Juan Carlos Blanco: “A redução da protecção do lobo deve-se a motivos políticos puramente eleitorais”
O biólogo Juan Carlos Blanco diz que a iniciativa da União Europeia para baixar protecção do lobo foi uma estratégia para “roubar votos à extrema-direita”. Proposta foi aprovada esta terça-feira.
A proposta da Comissão Europeia para baixar o estatuto de protecção do lobo no bloco europeu foi motivada por interesses eleitorais e não por razões científicas, afirma o biólogo espanhol Juan Carlos Blanco, que integra o grupo de especialistas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla inglesa) dedicado aos grandes carnívoros na Europa.
O objectivo da iniciativa, liderada pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, era “roubar votos à extrema-direita nas eleições para o Parlamento Europeu em Junho de 2024”, uma vez os partidos de direita radical populista “tendem a ser a favor da caça, contra a conservação da natureza e o combate às alterações climáticas”, defende Juan Carlos Blanco nesta entrevista ao PÚBLICO por videochamada.
Esta terça-feira, a Comissão Permanente da Convenção de Berna do Conselho da Europa aprovou a proposta para alterar o estatuto de protecção do lobo (Canis lupus) de “espécie de fauna estritamente protegida” (ou seja, abrangida pelo Anexo II) para “espécie de fauna protegida” (Anexo III). Esta deliberação obrigará a uma alteração inédita da Directiva Habitats. O investigador resume: “A pergunta mais importante é: até que ponto se pode matar lobos?”
Do ponto de vista científico, faz sentido rever o estatuto de protecção do lobo na União Europeia?
Há aqui duas questões. A Directiva Habitats foi aprovada em 1992, ou seja, já se passaram mais de 30 anos. Os lobos aumentaram muito entretanto e a própria União Europeia transformou-se. Nos anos 90, a União Europeia incluía sobretudo países do ocidente europeu. Agora, temos países de leste, como a Roménia, a Bulgária e os países bálticos, que trouxeram as suas populações de lobos. Portanto, podemos dizer que sim, que os lobos estão a aumentar, e por vezes de um modo espectacular, como é o caso da Alemanha, onde o primeiro casal se estabeleceu em 2000. Hoje há mais de mil lobos no país.
Os lobos estão a aparecer em países onde se pensava que as alcateias reprodutoras não se podiam instalar, como a Holanda, os Países Baixos, a Bélgica, a Dinamarca, que são países muito povoados e com pouca natureza. Portanto, sim, por um lado há aqui um fundamento científico para baixar a protecção do lobo, uma vez que as populações aumentaram muito.
Qual é a outra questão?
Por outro lado, nos países da União Europeia, para vermos se uma população está num bom estado de conservação, existe uma escala que indica se a espécie está num estado de conservação favorável. Em 2022, a Suíça – um país que não é da União Europeia, mas tem lobos protegidos pela Convenção de Berna – pediu para que a protecção fosse rebaixada. Em Novembro de 2022 – há apenas dois anos – a União Europeia votou contrariamente, disse não, argumentando que na maioria dos Estados-membros o lobo estava num estado de conservação desfavorável. Então, foi esse indicador que definiu as coisas.
A última avaliação do lobo foi feita em 2019 e a próxima será em 2025. Então, em 2023, quando Ursula von der Leyen vem propor baixar o estatuto de protecção do lobo, nada havia mudado em relação ao ano anterior do ponto de vista da conservação. A mesma proposta foi feita um ano antes pela Suíça e a Comissão Europeia disse que não havia razões científicas para reduzir a protecção.
O que mudou?
O que mudou é que haveria eleições para o Parlamento Europeu, que decorreram em Junho de 2024. Previam que ia haver um grande aumento dos partidos de extrema-direita, que tendem a ser a favor da caça, contra a conservação da natureza e o combate às alterações climáticas. As sondagens indicavam esta subida da extrema-direita. Portanto, tudo parece indicar que esta proposta desprotecção do lobo, ou redução da protecção, se deve a motivos políticos puramente eleitorais. E é isso que faz com que muitas pessoas se oponham a esta iniciativa.
Os grupos científicos tinham proposto adiar esta decisão até 2025, para que os Estados-Membros fizessem uma nova avaliação das suas populações de lobo e decidissem se estão num estado de conservação favorável ou desfavorável. Isso seria mais razoável. Ou seja, ver qual é o estado de conservação actual em cada Estado-Membro para poder ter uma série de discussões técnicas, e só depois disso, fazer uma proposta política.
Neste caso, a política sobrepôs-se à parte científica?
Sim, nitidamente. E com um objectivo muito claro: roubar votos à extrema-direita nas eleições para o Parlamento Europeu em Junho de 2024.
A Provedora de Justiça Europeia, Emily O'Reilly, abriu um inquérito sobre a redução do estatuto de protecção do lobo pela Comissão Europeia. Espera que esta iniciativa surta algum efeito?
Acho que não. Isto funciona da seguinte forma: há alguém que faz uma proposta e, neste caso, a proposta foi feita pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que, como se sabe, teve um pónei chamado Dolly que foi morto por um lobo. Há quem possa interpretar esta proposta como uma vingança pessoal, mas creio que que Dolly não teve muito a ver com isto. Tratou-se de uma estratégia eleitoral. Mas como eu dizia: a Comissão faz a proposta e depois os Estados-membros discutem-na e decidem por maioria qualificada.
[A maioria qualificada é alcançada se estiverem reunidas concomitantemente duas condições: 55 % dos Estados-Membros votam a favor (o que corresponde, na prática, a 15 dos 27 países) e a proposta é apoiada por países que representem pelo menos 65 % da população total da União Europeia.] Por isso, são importantes os países com maior população: Espanha e Alemanha (que não queriam a desprotecção do lobo), assim como a Itália e a França (que querem). Contudo, não sei bem como convenceram entretanto a Alemanha a votar a favor da desprotecção. Portanto, agora, há uma maioria qualificada a favor da redução da protecção ao lobo.
A União Europeia é signatária da Convenção de Berna. O que está em causa é passar o lobo do Anexo II desta convenção para o Anexo III, que abrange espécies protegidas da fauna, mas cuja exploração é possível. Ou seja, o lobo deixaria de estar estritamente protegido. Haverá agora [esta terça-feira] uma reunião da Comissão Permanente da Convenção de Berna sobre a Vida Selvagem e é quase certo que seja aprovado, uma vez que a União Europeia tem, graças à maioria qualificada, 27 votos a favor do rebaixamento da protecção. [Entretanto, a proposta foi aprovada esta terça-feira de manhã.]
Os lobos são protegidos na União Europeia ao abrigo da Directiva Habitats. Como vai ser feita a alteração da Directiva Habitats?
Isto é algo que não sabemos realmente como vai ser feito. É a primeira vez, desde que a Directiva Habitats entrou em vigor, em 1992, que uma decisão como esta é tomada. Mas se houver uma decisão da maioria [qualificada] dos Estados-Membros, então é muito provável que [a alteração] vá para a frente.
Esta alteração da Directiva Habitats pode ser perigosa ou é uma evolução normal de um documento que acompanha o estado das populações?
Teoricamente, sim. Quando as populações aumentam muito, deixam de estar estritamente protegidas e passam para outro nível de protecção. Contudo, nós nunca fizemos isso antes.
Estamos a entrar num território novo?
Sim, estamos a dar um passo em direcção a algo completamente novo. O que sempre foi dito é que, antes de dar um passo como este, deveríamos definir muito claramente o que significa estar no Anexo V da Directiva Habitats. Não é realmente muito claro. Há uma margem muito ampla para interpretar o que está no Anexo V, [onde “figuram as espécies de interesse comunitário cuja captura na natureza e exploração pode ser objecto de medidas de gestão”]. Por isso, o que foi pedido é que, antes que se avance com este processo, que se defina o que significa estar no Anexo V.
O que é preciso clarificar?
Que restrições têm as espécies que estão no Anexo V? A exploração que é feita destas espécies – se estiverem a ser caçadas, por exemplo – não deve pôr em perigo o seu estado de conservação favorável, mas em muitos países da União Europeia elas não atingiram esse estado de conservação. Há questões que nunca foram respondidas e que deveriam ser clarificadas antes de iniciar este processo. A verdade é que o processo já começou sem responder a tais questões. E é por isso que há muitas entidades contra.
Qual é a questão que é mais urgente clarificar?
A pergunta mais importante é: até que ponto se pode matar lobos? Ou reduzir num Estado uma população que está dentro do Anexo V? A Directiva diz que a exploração não deve pôr em perigo o estado de conservação favorável. Mas há países da União Europeia em que este estado de conservação ainda não foi alcançado. Uma das questões colocadas na Finlândia é que, nas zonas em que os lobos estão no Anexo V, praticamente todos os lobos são autorizados a ser mortos (não todos). O que é que a Comissão Europeia vai fazer para evitar isso, se não o impediu durante todos estes anos na Finlândia? Se fizerem o mesmo noutros Estados-membros, o que é que a Comissão vai fazer? Isto não foi discutido.
Portugal votou a favor do rebaixamento do estatuto do lobo, mas disse que manteria o mesmo nível de protecção em território nacional. Esta posição portuguesa surpreendeu-o?
É um pouco surpreendente. É surpreendente que um país como Portugal, onde nenhum lobo foi morto legalmente durante décadas, um Estado-membro que tem um espírito muito conservacionista em relação ao lobo, tenha votado a favor da exploração. É contraditório dizer que se pode desproteger noutros países, mas não o vamos fazer em Portugal, certo? Em todo o caso, cada país pode aplicar esta desprotecção se quiser; se não quiser, não a aplica. Ou seja, não é obrigado a aplicá-la. Portanto, Portugal pode manter o lobo estritamente protegido, embora na União Europeia o lobo esteja no Anexo V da Directiva Habitats.
Porque é importante proteger o lobo?
Há uma razão que, para mim, é fundamental: os lobos sempre estiveram connosco, sempre fizeram parte das florestas europeias, dos ecossistemas e da nossa cultura. Conseguimos exterminá-los em muitos países, porque também tínhamos exterminado em grande parte os ungulados selvagens, antes dos lobos. Ao mesmo tempo que os lobos, tínhamos exterminado os javalis, os corços, os veados, as camurças. Mas nos últimos anos, graças a uma maior sensibilidade ambiental, os ungulados selvagens, o javali, o corço, etc., aumentaram muito. E os lobos aumentaram com eles. Restaurámos, em certa medida, a natureza que tínhamos na Europa há centenas de anos. A principal razão, para além da sua função ecológica, é que nós voltamos a ter nalguns sítios da Europa ecossistemas que nos acompanharam ao longo da nossa existência enquanto humanos. E isso importa.
Entrevista actualizada às 9h57: foi incluída informação relativa à aprovação da proposta de alteração do estatuto do lobo.