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Sete em cada 10 cidadanias italianas são concedidas a brasileiros. Lei está em debate
Em 2023, a Itália concedeu 61,3 mil cidadanias por direito de sangue, dos quais quase 42 mil, ou 68,5%, foram para brasileiros. Mas há um debate interno no país para limitar esse processo.
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No ano passado, foram reconhecidas na Itália ao menos 61,3 mil cidadanias por direito de sangue a descendentes de italianos. Com quase 42 mil, os brasileiros representaram 68,5% dos casos — os maiores beneficiados —, ou seja, quase sete em 10. Os dados são de uma pesquisa divulgada em setembro pela Associação Nacional dos Oficiais de Estado Civil e Registro (Anusca), que encomendou o levantamento ao Istat (Instituto Nacional de Estatística), equivalente italiano ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Mas, no último ano, cartórios públicos, autoridades municipais e judiciárias passaram a se queixar do volume de pedidos apresentados por descendentes de antigos emigrados para o continente americano, especialmente os brasileiros, abrindo um debate sobre a atual legislação. Faltavam, no entanto, números que dessem a dimensão desses casos.
De acordo com a pesquisa, realizada com dados das prefeituras, o número de processos concluídos por direito de sangue subiu 111% de 2021 a 2023, atingindo quase 50 mil por ano. Como cada processo pode ter mais de um descendente, o total de cidadanias reconhecidas chegou aos 61,3 mil.
Abaixo dos 41,9 mil pedidos brasileiros, estão os argentinos, em segundo lugar, com 12 mil (19,9%) cidadanias reconhecidas no ano passado. Em terceiro, vêm os norte-americanos, com 886 (1,4%).
O levantamento não inclui as cidadanias reconhecidas por meio dos consulados no exterior, calculados em 90 mil em 2022, segundo a imprensa italiana. Também não incluem outras formas de se tornar cidadão do país, como tempo de residência na Itália ou casamento.
Ações judiciais
Os dados se referem somente aos processos por direito de sangue (iure sanguinis) realizados na Itália, por meio da via administrativa e da via judicial. No primeiro, são descendentes que vão para a Itália, estabelecem formalmente a residência em um município e apresentam o pedido na prefeitura. No segundo, são pessoas que acionam a Justiça exigindo o reconhecimento, um processo que pode ser feito à distância, por advogados, sem precisar ir ao país europeu.
Segundo a pesquisa, 59% dos reconhecimentos do ano passado foram feitos por via judicial. O método é utilizado, principalmente, por quem fez o pedido nos consulados e, diante de filas que podem chegar a 10 anos, entrou com recurso na Justiça.
"É um fenômeno muito, muito relevante, que parece em crescimento constante", diz à Folha Giancarlo Gualtieri, pesquisador do Istat, responsável pela área de presença estrangeira e integração. Trata-se, no entanto, de um número subestimado, já que, de quase 8 mil municípios, responderam cerca de 5 mil. "Se todos tivessem respondido, provavelmente chegaríamos a 100 mil cidadanias reconhecidas em um único ano."
O pesquisador ressalta que, nas 109 prefeituras que mais tiveram pedidos de brasileiros, 75% dos reconhecimentos aconteceram por via judicial. Para o setor de registro e estado civil, essa alta de pedidos tem impacto notável, segundo Renzo Calvigioni, da Anusca. "Nos últimos dois ou três anos, houve uma aceleração muito forte e muito rápida, com números devastantes", afirma.
Os cartórios públicos, principalmente em cidades pequenas, queixam-se de estarem sobrecarregados por pedidos de checagem ou de transcrição de certidões de nascimento, casamento, divórcio e óbito de toda a linha de descendência do autor do pedido, até chegar ao parente nascido na Itália. Em vários casos, esse familiar deixou o país durante a grande onda migratória do fim do século 19. "Estamos falando de uma carga de trabalho que chega a bloquear o setor de registros", diz Calvigioni.
Em 2023, para as 61,3 mil cidadanias reconhecidas por descendência, foi preciso transcrever 86,2 mil certidões de estado civil.
Limites na lei
Também os tribunais se lamentam, como o de Veneza. A região do Vêneto é origem de boa parte do 1,4 milhão de italianos que, entre 1870 e 1920, foram viver no Brasil. Segundo a pesquisa Anusca/Istat, 81% das cidadanias reconhecidas no Vêneto foram obtidas por prática judicial, o maior percentual nacional.
Como tentativa de responder aos tribunais, a Lei Orçamentária que está em tramitação no Parlamento prevê uma mudança na taxa para os processos judiciais de reconhecimento da cidadania. Em vez de 518 euros (R$ 3.265) por processo, independentemente do número de beneficiados, o texto propõe que sejam cobrados 600 euros (R$ 3.780) de cada requerente.
Outro efeito é a abertura de um debate público e político sobre a lei da cidadania, de 1992. Diante de tantos pedidos feitos por quem não mora na Itália, os descendentes são acusados de estarem interessados somente nas facilidades que o passaporte italiano pode proporcionar, como livre circulação na União Europeia e entrada sem visto nos Estados Unidos.
Há quem defenda, como o vice-premiê Antonio Tajani, que a lei seja modificada para limitar o número de gerações com direito de sangue e exigir certificado de conhecimento do idioma e da cultura italiana.
De volta aos números, a previsão de especialistas é que os pedidos vão continuar a subir nos próximos anos, alavancados por brasileiros e argentinos. "Entre 1876 e 1925 emigraram para o continente americano quase 9 milhões de italianos, sendo 3,5 milhões para o Brasil e a Argentina", diz Gualtieri, do Istat. "É fácil prever que ao menos pelos próximos quatro ou cinco anos, se não mudar a legislação, esses pedidos continuarão a aumentar. Se, por outro lado, a lei for alterada, muda tudo."