Haia: os Estados que causaram as alterações climáticas agiram ilegalmente?
No Tribunal Internacional de Justiça defende-se que devem ser responsabilizados os Estados que “permitiram e encorajaram a produção e o consumo de combustíveis fósseis e ainda continuam a fazê-lo”.
“O resultado deste processo irá repercutir-se ao longo de gerações, determinando o destino de nações como a minha e o futuro do planeta.” Foi com estas palavras que o enviado especial de Vanuatu para as alterações climáticas e ambiente, Ralph Regenvanu, abriu as intervenções dos Estados da região da Melanésia no início de uma audiência histórica no Tribunal Internacional de Justiça sobre os deveres dos Estados em matéria de alterações climáticas.
Vanuatu foi um dos pequenos Estados insulares que liderou os esforços para que a Assembleia Geral das Nações Unidas pedissem ao Tribunal Internacional de Justiça um parecer consultivo. Ao longo das próximas duas semanas, 99 Estados e uma dúzia de organizações internacionais irão tomar a palavra para apresentar os seus argumentos perante o tribunal superior das Nações Unidas, situado em Haia, nos Países Baixos.
Embora os pareceres consultivos do tribunal não sejam vinculativos, são jurídica e politicamente relevantes, influenciando processos judiciais em tribunais de todo o mundo com a sua interpretação.
“Estes Estados actuaram de forma legal?”
Os Estados mais afectados pelas alterações climáticas pretendem que o TIJ esclareça se “os actos e omissões” dos países que mais contribuíram para as alterações climáticas - ou seja, os maiores emissores de gases com efeito de estufa - podem ser responsabilizados pelas consequências desta conduta.
“A questão é simples no seu cerne: estes Estados actuaram de forma legal?”, afirmou Ralph Regenvanu, perante os juízes do TIJ, lembrando que os Estados da Melanésia “estão longe de ser os únicos a colocar essa questão”. Para o representante de Vanuatu, a resposta é directa: a conduta desses Estados “é ilegal, deve cessar e as suas consequências devem ser reparadas”.
Para os pequenos Estados insulares, em particular, o impacto das emissões e das alterações climáticas de origem antropogénica “custou-lhes o seu bem-estar, as suas culturas e até as suas vidas”, afirmou Regenvanu. “Este deve ser o caso mais consequente da história da humanidade”, concluiu.
Combustíveis fósseis “proactivamente encorajados”
A presidente do Pacific Islands Students Fighting Climate Change - o grupo de estudantes que teve a ideia de solicitar um parecer consultivo sobre o clima ao TIJ -, Cynthia Houniuhi, explicou aos juízes que a equidade intergeracional faz parte do “contrato sagrado” em que se baseia a cultura de muitos povos desta região, compelindo-os a proteger o ambiente.
A jovem jurista das Ilhas Salomão explicou a importância do território para a sociedade e cultura da região: “Sem a nossa terra, os nossos corpos e memórias são arrancados dessa relação fundamental que definiu quem somos”. Assim, o seu direito à autodeterminação fica comprometido quando vêem as suas terras “prestes a serem completamente engolidas pelo mar”.
Cynthia Houniuhi repetiu as alegações dos outros membros da sua delegação: existe um grupo de Estados que devem ser responsabilizados pelas alterações climáticas, que “não apenas permitiram, mas encorajaram proactivamente a produção e o consumo de combustíveis fósseis e continuam a fazê-lo ainda hoje”.
“Tarefa de Sísifo”
Ainda durante as intervenções do Grupo de Líderes da Melanésia, o jovem advogado Julian Aguon relembrou que o impacto das alterações climáticas tem prejudicado o desenvolvimento económico, social e cultural das populações, muitas das quais “perderam tudo”.
“Em Vanuatu, por exemplo, [as catástrofes] deixam o país num estado de emergência quase constante”, descreveu. “A tarefa de Sísifo de responder às catástrofes climáticas deixou o país incapaz de prosseguir as suas aspirações de desenvolvimento sustentável, obrigando o governo a contrair dívidas substanciais.”
Instando o tribunal a “traduzir os direitos na prática”, Julian Aguon apelou a que o mundo tenha em conta e valorize as “imaginações alternativas” destes povos ignorados, “imaginações diferentes das que levaram o planeta ao colapso”.
A advogada Margaretha Wewerinke-Singh, uma das principais conselheiras de Vanuatu neste processo, começou por recordar o princípio “Ubi jus ibi remedium”: onde há um direito, há um remédio.
“As culpas parciais também justificam responsabilidades parciais”, afirmou a advogada, apelando ao TIJ que reconheça que o direito internacional já permite considerar a ilicitude da actuação dos Estados emissores. “Nenhum Estado está acima da lei”, declarou Margaretha Wewerinke-Singh. E os direitos, defende, devem ser acompanhados de uma reparação.