Não é desta que temos um tratado sobre plásticos. “Cada dia de atraso é um dia contra a humanidade”

Aquela que deveria ser a última ronda de negociações para um tratado global para reduzir a poluição por plásticos acabou em adiamento. Coligação de mais de 100 países não resistiu a lobby do petróleo.

Foto
Países falharamm acordo na quinta ronda de negociações da ONU para reduzir a poluição por plástico Minwoo Park / REUTERS
Ouça este artigo
00:00
05:33

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Afinal, ainda não é desta que teremos um tratado global para reduzir a poluição por plásticos. A quinta reunião do Comité Intergovernamental de Negociação das Nações Unidas (INC-5) para a elaboração de um tratado sobre plásticos, realizada em Busan, na Coreia do Sul, deveria ser a última ronda de negociações para chegar a um tratado global juridicamente vinculativo. Contudo, ainda não foi desta que os países conseguiram chegar a acordo — e não parecem estar sequer perto disso.

A INC-5 chegou ao fim na madrugada de segunda-feira na hora local (final da tarde deste domingo em Lisboa), com mais de 100 nações a quererem limitar a produção, enquanto um punhado de produtores de petróleo estava disposto a visar apenas os resíduos de plástico. Se essas divisões tivessem sido ultrapassadas, o tratado teria sido um dos acordos mais importantes em matéria de protecção ambiental desde o Acordo de Paris de 2015.

No entanto, os países mantiveram as suas divergências quanto ao âmbito do tratado e apenas concordaram em adiar as principais decisões para uma próxima reunião, que deverá acontecer no primeiro semestre do próximo ano.

Base para continuar a negociar

A presidência do ICN-5, liderada pelo equatoriano Luis Vayas Valdivieso, tinha apresentado na manhã de domingo (madrugada em Lisboa) um novo documento de negociação.

O "non-paper", que se espera poder constituir a base de um tratado, deixa ainda várias questões em aberto, incluindo as questões mais polémicas, como a limitação da produção de plásticos — o grande pomo da discórdia , a gestão dos produtos plásticos e dos produtos químicos que suscitam preocupação e ainda o financiamento para ajudar os países em desenvolvimento a aplicar o tratado (os chamados "meios de implementação").

“Embora tenhamos visto pontos de convergência em muitas áreas, as posições continuam a ser divergentes noutras”, lamentou Luis Vayas Valdivieso, que propôs ao plenário que a reunião fosse suspensa e retomada dentro de alguns meses, dando tempo para mais negociações.

“Cada dia de atraso é um dia contra a humanidade”

Uma opção proposta pelo Panamá, apoiada por mais de 100 países, procurou criar um caminho para um objectivo global de redução da produção de plástico, enquanto outra proposta não incluía limites de produção.

“Um tratado que se baseia apenas em medidas voluntárias não seria aceitável”, afirmou Juliet Kabera, directora-geral da Autoridade de Gestão Ambiental do Ruanda. “É altura de levarmos isto a sério e negociarmos um tratado que seja adequado ao objectivo e não construído para falhar”, defendeu, fortemente aplaudida pelo plenário.

Apesar do adiamento, vários negociadores expressaram a urgência em regressar às negociações. “Cada dia de atraso é um dia contra a humanidade. O adiamento das negociações não adia a crise”, afirmou o chefe da delegação do Panamá, Juan Carlos Monterrey Gomez, no domingo. “Quando voltarmos a reunir-nos, os riscos serão maiores.”

Hugo Schally, conselheiro para as negociações internacionais da Direcção-Geral do Ambiente da Comissão Europeia, afirmou que a UE está desiludida com o resultado do INC-5. “Não obtivemos o que queríamos: um tratado juridicamente vinculativo com uma acção decisiva contra a poluição por plásticos, um tratado que traga mudanças concretas para a natureza e o ambiente marinho e para todas as pessoas em todo o mundo”, afirmou, citado num comunicado. Estas medidas são necessárias, acrescentou, “para além da gestão dos resíduos e de uma participação justa do sector privado através do alargamento da responsabilidade dos produtores”. “É o mínimo que pode ter um impacto e que podemos aceitar.”

Bloqueio do lobby do petróleo

Um pequeno número de países produtores de produtos petroquímicos, como a Arábia Saudita, opôs-se fortemente aos esforços para reduzir a produção de plástico e tentou utilizar tácticas processuais para atrasar as negociações.

“Nunca houve qualquer consenso”, afirmou o delegado da Arábia Saudita Abdulrahman Al Gwaiz, durante o plenário de encerramento. “Há alguns artigos que, de alguma forma, parecem ter entrado (no documento) apesar da nossa insistência para não constassem.”

Alguns negociadores, contudo, confirmam que alguns países bloquearam os procedimentos, evitando os compromissos necessários para o processo de consenso das Nações Unidas. O delegado nacional do Senegal, Cheikh Ndiaye Sylla, considerou “um grande erro” excluir a votação durante toda a negociação, um acordo feito no ano passado durante a segunda ronda de negociações em Paris.

Processo atrasado

O adiamento ocorre poucos dias após a conclusão atribulada da Cimeira do Clima das Nações Unidas, a COP29, que teve lugar em Bacu, no Azerbaijão. Em Bacu, os países estabeleceram um novo objectivo global para disponibilizar 300 mil milhões de dólares por ano em financiamento climático, um acordo considerado muito insuficiente pelos pequenos Estados insulares e por muitos países em desenvolvimento.

À semelhança do que aconteceu com o tratado adiado dos plásticos, as negociações sobre o clima também foram atrasadas por manobras processuais da Arábia Saudita, que se opôs à inclusão de uma linguagem que reafirmava o compromisso definido na COP28, no Dubai, de "transição para o abandono dos combustíveis fósseis".

A poluição por plásticos é considerada uma das três crises planetárias, ao lado das alterações climáticas e da perda da biodiversidade. Têm sido encontrados microplásticos no ar, em produtos frescos e até no leite materno. De acordo com um relatório de 2023 do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, as mulheres e as crianças são particularmente susceptíveis à sua toxicidade.

A produção de plástico deverá triplicar até 2050. China, Estados Unidos, Índia, Coreia do Sul e Arábia Saudita foram os cinco principais países produtores de polímeros primários em 2023, de acordo com o provedor de dados Eunomia.