Vanuatu leva justiça climática ao Tribunal Internacional (e arrasta quase 100 países para a audiência)
Ralph Regenvanu, enviado especial para o clima do pequeno Estado de Vanuatu, em pleno oceano Pacífico, não vai baixar os braços enquanto não tentar todas as vias para a justiça climática.
Este é um dia histórico: começa esta segunda-feira uma série de audiências no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), em Haia, sobre as obrigações dos Estados em matéria de alterações climáticas. Ao longo das próximas duas semanas serão ouvidas intervenções de mais de 100 países e dezenas de organizações internacionais sobre o pedido de parecer consultivo que bateu todos os recordes de participação na história deste tribunal das Nações Unidas.
Uma das primeiras intervenções será a de Ralph Regenvanu, enviado especial para o clima do pequeno Estado de Vanuatu, um arquipélago em pleno oceano Pacífico, que tem como “vizinhos” (a mais de mil quilómetros de distância) as ilhas Fiji, Ilhas Salomão e Nova Caledónia. Vanuatu está entre os territórios mais ameaçados pelos impactos das alterações climáticas, não apenas a subida do nível das águas do mar, mas também os fenómenos extremos que ano após ano trazem destruição às suas ilhas.
A ideia de pedir um parecer consultivo ao Tribunal Internacional de Justiça nasceu de um grupo de estudantes da Faculdade de Direito da Universidade do Pacífico Sul. Em 2019, decidiram enviar cartas aos ministros dos Negócios Estrangeiros de todos os países do Pacífico para apresentar a sua ideia. Na altura, Ralph Regenvanu era Ministro dos Negócios Estrangeiros de Vanuatu e decidiu aceitar o pedido de reunião com os jovens estudantes. Em Julho de 2019, acabaria por levar a proposta à reunião dos ministros dos negócios estrangeiros do Fórum das Ilhas do Pacífico.
Foi aí que começou o intenso esforço diplomático que culminou na aprovação, em Março de 2023, pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, de um pedido de parecer consultivo ao TIJ. O Azul conversou com Ralph Regenvanu, que tem representado Vanuatu nas diferentes conferências das Nações Unidas, para compreender o que pode mudar com esta decisão.
O seu país é protagonista de uma decisão que pode ter um grande impacto em matéria de justiça climática. Como é que o povo de Vanuatu está a acompanhar este caso, neste momento político tenso que o país vive?
Quando a Assembleia Geral das Nações Unidas votou, em Março do ano passado, a favor do pedido de parecer consultivo ao TIJ, foi uma grande vitória diplomática para Vanuatu. Foi a primeira vez que fizemos algo que teve o apoio de toda a Assembleia Geral. Houve uma grande celebração aqui em Vanuatu, estava em todos os noticiários. Foi um momento de orgulho para o país. Neste momento, o Parlamento foi dissolvido e estamos a caminho das eleições antecipadas em Janeiro, por isso é claro que uma das preocupações mais prementes neste momento no país é o facto de estarmos neste período que antecede as eleições. Apesar disso, este processo é algo que se arrasta há vários anos e temos uma delegação que vai apresentar o caso perante o TIJ na próxima semana, penso que as pessoas continuam a acompanhar o assunto.
Que apoio esperam dos países que vão fazer as suas declarações orais? Por exemplo, o que é que esperam ouvir dos países desenvolvidos? Serão aliados ou defenderão os seus interesses, como temos visto nas Conferências do Clima?
Estamos agora na fase de apresentação de alegações orais, ou seja, comparecer perante o tribunal e apresentar os nossos argumentos. Mas as alegações escritas de todas as partes foram apresentadas até Maio deste ano, e depois as respostas escritas às alegações foram feitas em Agosto. Os países do Sul Global em geral, mas a Aliança dos Pequenos Estados Insulares (AOSIS) mais especificamente, estão todos a apoiar a posição de Vanuatu, que pede mais obrigações e responsabilidade dos Estados para lidar com as alterações climáticas.
Sabemos que os intervenientes que se opõem a esta responsabilização, ou que se opõem à nossa posição mais especificamente, são a União Europeia, os EUA e os nossos vizinhos próximos, como a Nova Zelândia e a Austrália, que defendem um sentido de responsabilidade muito mais restrito e menos obrigações. É basicamente o mesmo tipo de dinâmica e divisão que se verifica nas Conferências do Clima (COP) entre os países em desenvolvimento e os países desenvolvidos.
Estamos num nível muito complexo do direito internacional, nem sempre é fácil de compreender que diferença faz um parecer do TIJ. Até onde é que isto pode ir em termos mais concretos?
Se obtivermos o resultado que pretendemos, o parecer consultivo do TIJ dirá basicamente que, ao abrigo do direito internacional, é ilegal contribuir com emissões de gases com efeito de estufa que resultem em danos significativos para os ecossistemas, para o sistema climático, para o ambiente e para os direitos humanos em geral. Naturalmente, também fornecerá precedentes para casos legais. Existem centenas, milhares de processos de litígio sobre o clima a decorrer em todo o mundo a vários níveis, em municípios, províncias e Estados, acções contra empresas de combustíveis fósseis, etc. O parecer pode ajudar todos eles.
Se obtivermos um parecer consultivo que torne muito claro que estas acções são ilícitas ao abrigo do direito internacional, isso permitir-nos-á voltar, por exemplo, às negociações da COP e responder a muitos dos argumentos que estão a ser apresentados dizendo, “Não, isso é ilegal, não podem tomar essa posição.” Creio que isso nos ajudará a criar uma base no direito internacional para responsabilizar muito mais os países pelas suas acções e inacções. Esperamos sinceramente que também ajude a fornecer algumas barreiras para o que se pode e o que não se pode propor. E que elimine as desculpas que temos ouvido, em particular dos Estados com maiores emissões que continuam a apresentar todo o tipo de argumentos que consideramos irrelevantes e que não estão no espírito do Acordo de Paris.
Vanuatu é um dos proponentes do crime de ecocídio noutra instância, o Tribunal Penal Internacional. Trata-se de uma estratégia jurídica vossa, explorar todas as soluções possíveis?
Basicamente, as vias existentes para a tomada de medidas em matéria de alterações climáticas não estão a funcionar, como o processo da COP no âmbito da UNFCCC [Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas], que é demasiado lento e vemos que as mudanças não estão a acontecer. Estamos a analisar todas as opções possíveis. Uma delas é o TIJ, outra é o TPI, de criar um novo crime contra a humanidade, o ecocídio, que é a destruição maciça do ambiente. Ainda estamos a ver se conseguimos isso, é necessário um acordo da Assembleia dos Estados Partes do TPI. Mas estamos à procura de tudo o que for possível. Estamos a tentar todas as vias para ver como podemos pressionar para que a acção climática se concretize a um nível muito mais adequado do que o que está a acontecer agora, que é grosseiramente inadequado.
Qual é a sua opinião sobre os resultados desta COP29?
Bem, o resultado da COP29 é muito mau para a acção climática em geral. Foi descrito como possivelmente uma das piores COP de sempre em termos de resultados. Não se conseguiu nada de significativo no que respeita à eliminação progressiva da utilização de combustíveis fósseis, que é, obviamente, a solução para as alterações climáticas. Na COP29 de Bacu, vimos que estamos muito longe de atingir o objectivo de 1,5C e não existe vontade política para reduzir as emissões de forma a manter-nos nesse caminho. Depois, era suposto ser também a “COP do financiamento”, para que os países em desenvolvimento se adaptem e também para fazer face às perdas e danos que estão a tornar-se cada vez mais um facto da nossa existência. Não houve qualquer vontade política para disponibilizar o valor que os países em desenvolvimento colocaram em cima da mesa.
No Acordo de Paris há um elemento de justiça climática, em que os países desenvolvidos fornecem o financiamento, considerando que muitos países em desenvolvimento como Vanuatu, que contribuíram com menos de 1% das emissões, não causaram a crise que estamos a enfrentar agora. O que foi acordado é grosseiramente inadequado. São apenas 300 mil milhões por ano [até 2035], incluindo empréstimos, incluindo mecanismos de mercado privados, é extremamente inadequado. Ficámos muito desapontados e frustrados com o resultado.
Também foi aprovado o chamado “Roteiro de Bacu a Belém”, tentando um caminho mais concreto para alcançar 1,3 biliões de dólares anuais até 2035. Como é que vê esta vontade do Brasil de ter resultados na COP30?
Vamos recuperar as energias para fazer uma verdadeira pressão para que haja uma mudança no Brasil. Haverá muita mobilização entre os Estados em desenvolvimento, particularmente os AOSIS e o Grupo dos 77. Não tenho muitas esperanças, mas ainda assim vamos fazer tudo o que pudermos porque, basicamente, não temos outra opção. Mas não estou muito esperançado, não. Penso que precisamos do TIJ, precisamos de exercer alguma pressão legal agora.
As instâncias das Nações Unidas são sempre muito pesadas e lentas, mas acabam por ser as únicas em que os pequenos países têm voz. O que é que países desenvolvidos, como Portugal, poderiam fazer para facilitar as coisas?
Os países desenvolvidos precisam de eliminar gradualmente a utilização de combustíveis fósseis, precisam de se tornar neutros em emissões de carbono. Esta é a medida mais directa que podem tomar. Todos precisamos de o fazer. Todos temos de sair da estrada da extracção e produção de combustíveis fósseis. Há países que nos inspiram, como a Colômbia, que é um país produtor de petróleo mas decidiu suspender qualquer extracção futura, apesar de dispor de recursos. Fazer essas escolhas para dizer que não vão continuar neste caminho é, obviamente, a forma mais directa de parar as alterações climáticas a que estamos a assistir e reduzir os seus efeitos nocivos. Essa é a melhor opção.
Mas também, claro, há a questão de os nossos países ainda estarem em desenvolvimento e o facto de todos precisarmos de avançar para melhorar os direitos humanos e a condição humana em geral. Há um objectivo que foi estabelecido pela ONU há muitos, muitos anos, que era destinar 0,7% dos orçamentos nacionais à ajuda pública ao desenvolvimento. Esse objectivo é considerado o ponto de referência internacional para a ajuda ao desenvolvimento, mas creio que nenhum Estado o cumpre.
E ainda há todo o dinheiro que precisam de investir na recuperação dos desastres climáticos que vos afectam.
Claro, temos todas as questões relacionadas com o facto de termos de lidar cada vez mais com perdas e danos. Em Paris ficou acordado que haveria financiamento climático para nos ajudar a adaptar, e deixaríamos de emitir para tentar reduzir os impactos das alterações climáticas. O facto de não termos reduzido as emissões o suficiente e de não ter sido disponibilizado financiamento suficiente para a adaptação significa que agora vai haver mais perdas e danos porque estamos a ultrapassar a fase de adaptação. Ou seja, agora estamos a lidar com os danos que resultam de fenómenos meteorológicos de alta intensidade também porque não conseguimos financiar antes a adaptação.