ANP/WWF quer “libertar” a ribeira de Oeiras, um importante afluente do rio Guadiana
A intervenção que vai ser efectuada garante a recuperação de um troço da linha de água com 2,3 quilómetros e aposta num possível regresso de espécies autóctones que entretanto desapareceram.
Para “restaurar a conectividade fluvial” na ribeira de Oeiras, um dos cursos de água mais longos do Alentejo e afluente da margem direita do rio Guadiana, a organização ambientalista ANP/WWF vai remover no início de 2025 o açude Horta do Fialho. Esta remoção irá realizar-se com o apoio da European Open Rivers Programme, uma organização que atribui fundos dedicados à retirada de barreiras obsoletas em rios europeus, com vista ao seu restauro.
Esta é a terceira vez que a ANP/WWF ganha um novo financiamento para remover uma barreira fluvial obsoleta e estudar outras para futuras remoções, seguindo a estratégia para a Biodiversidade 2030 e a nova Lei do Restauro da Natureza que obriga os Estados-membros da União Europeia a libertar pelo menos 25.000 quilómetros de rios em toda a Europa. Compete a Portugal um conjunto de intervenções em cerca de 600 quilómetros de rios e ribeiras.
Os projectos de restauro da natureza mais avançados em Portugal são os de restabelecimento da conectividade natural dos rios, disse a ministra do Ambiente, Graça Carvalho em Agosto. Há 300km de intervenções, um total de 14 projectos, dos quais cinco já estão em curso e orçam em nove milhões de euros: nos rios Leça, Fresno, Freixiel, Vizela e Pelhe. Decorrem através da Agência Portuguesa do Ambiente, em colaboração com os municípios.
Proteger espécies ameaçadas
Nas explicações prestadas ao PÚBLICO, Maria João Costa, coordenadora de água na ANP/WWF, salientou que o açude na ribeira de Oeiras “já não cumpre a função para a qual foi construído e que, aos dias de hoje, está apenas a obstruir o curso natural da ribeira”.
Embora não seja clara qual a função a que terá sido destinada a estrutura construída em betão “admite-se que [se esteja] perante um vertedor destinado à medição de caudais”. Tanto a montante como a jusante da estrutura que vai ser demolida. “Existem outras estruturas” que poderão confirmar essa possibilidade, salienta Maria João Costa.
A retirada do açude vai permitir a recuperação de um troço fluvial com 2,34 quilómetros para melhorar não só a vegetação ripícola na área de intervenção, mas também o habitat para peixes nativos e espécies de mexilhões ameaçadas. Na ribeira de Oeiras habitam várias espécies autóctones e ameaçadas de extinção, como o mexilhão-de-rio-do-sul (Unio tumidiformis), ou a enguia europeia (Anguilla anguilla).
Esta subbacia do rio Guadiana é também habitat do lince-ibérico (Lynx pardinus) e da lontra (Lutra lutra). A acção de restauro projectada pela ANP/WWF “pode ainda criar condições para o regresso de outros peixes ameaçados anteriormente encontrados na ribeira, como, por exemplo, o caboz-de-água-doce (Salariopsis fluviatilis) ou a lampreia marinha (Petromyzon marinus)”, assinala a organização ambientalista.
O projecto que vai ser executado inclui a monitorização das comunidades de peixes e mexilhões de água doce, bem como da qualidade da água, o que permite avaliar a abundância de biodiversidade antes e após a remoção.
Ribeira “presa” por nove barreiras
A iniciativa da ANP/WWF vai abrir caminho para o restauro total da conectividade da ribeira de Oeiras, uma das mais extensas da região alentejana, com 143,3 quilómetros desde a serra do Caldeirão até desaguar no rio Guadiana na vila de Mértola. Neste momento os técnicos da organização estudam outras nove barreiras identificadas na ribeira com o intuito de libertar todo o seu curso, contribuindo para melhorar o seu estado ecológico e promover a conservação da biodiversidade.
Como a ribeira de Oeiras atravessa um dos mais importantes coutos mineiros europeus de metais não ferrosos (o de Neves Corvo), a ANP/WWP indagou junto da Somincor, entidade que detém a concessão da extracção mineira, sobre eventuais impactos que poderiam estar a afectar a linha de água. Recebeu a indicação de que a empresa mineira já tinha realizado um plano de conservação e monitorização das espécies da fauna e da ictiofauna que existem na linha de água e que “desde 2021 deixou de proceder a descargas de efluentes produzidas na Somincor na ribeira de Oeiras”. A concessionária da mina de Neves Corvo garantiu ainda à ANP/WWF que a linha de água apresenta valores físico-químicos “dentro dos parâmetros legais” que podem suportar sem percalços a recuperação das espécies autóctones que, entretanto, desapareceram desta subbacia do Guadiana.
Num outro contexto e com uma outra função económica destacam-se os açudes erguidos no troço do rio Guadiana e dos seus afluentes com vestígios que remontam há 2000 anos.
Num levantamento efectuado em 1998 pelo Campo Arqueológico de Mértola aos moinhos ainda existentes na bacia do Guadiana em território português, o investigador Rui Guita apurou que “por cada moinho do Guadiana ainda visível há um açude”. Só no concelho de Mértola existiam, naquele ano, mais de 80 moinhos que ainda nos anos 50 do século passado moíam uma razoável quantidade de trigo produzido no então chamado (erradamente) “celeiro de Portugal”. Dentro das albufeiras de Alqueva e Pedrógão, mais de 120 destas estruturas ficaram submersas.
Muitos dos açudes ainda presentes no Guadiana são seculares. O PÚBLICO questionou a coordenadora da água da ANP/WWF sobre este património histórico e sobre as suas implicações no equilíbrio ambiental deste grande rio ibérico. Maria João Costa reconheceu que a avaliação deste tipo de açudes e a sua eventual remoção necessitará de “um trabalho sistemático” que terá de envolver as entidades governamentais. De qualquer modo, por falta de uso e de manutenção (a actividade molinheira faz agora parte da história) muitos dos açudes instalados no Guadiana degradaram-se, aluíram, e deixaram de impedir o curso normal do rio.