Bolos do passado e cocktails do futuro: Almada é uma máquina do tempo
Almada adora os seus clássicos. Vingam as cervejarias de Cacilhas com vista para o rio e, no centro, os restaurantes tradicionais, mas aos poucos uma nova geração traz outros conceitos à restauração.
Há uma aragem nova a correr em Almada. Não são grandes ventos de mudança, mas antes uns cheirinhos a qualquer coisa de novo na restauração da cidade. A escassos minutos da capital, onde parece haver espaço para todo o tipo de restaurante, bar ou loja gastronómica, em Almada tudo tarda, é o que dizem. O público é mais conservador, arrisca menos, mas, aos poucos, as novidades vão aparecendo ao lado de clássicos que se mantêm como novos.
No centro, na margem das avenidas que rasgam a cidade, os cafés antigos continuam cheios — não como na época em que Almada estava cheia de manufacturas, nos anos 1960 e 1970, ou no tempo das sessões do Incrível Almadense, mas ainda há quem faça sala. Em Cacilhas, os restaurantes fazem justiça à fama no marisco e no peixe.
É neste ecossistema já mil vezes testado que começam a aparecer novos conceitos: um restaurante diário com um pouco mais de técnica, um bar que não faz caipirinhas e aposta em destilados caseiros ou um wine bar de pequenos produtores.
Por isto, ir a Almada para comer é passar o dia na máquina do tempo: ora recuando cinquenta anos para comer os garibaldis da moda nos anos 1970, ora com um pé no acelerador, rumo ao futuro, onde um cocktail também pode levar arroz. Liguemos a máquina.
Um setubalense de Almada
A vitrina é farta e cheia de cremes honestos, faz qualquer um tornar à ansiedade de uma criança que, entre tantos, só pode escolher um bolo. Ao lado, um cliente habitual da Pastelaria Condestável ajuda na decisão apontando para um folhado. “Se vendessem isto sempre quente, podiam abrir ao lado dos Pastéis de Belém.” O bolo que faria concorrência ao mais famoso doce de Lisboa chama-se setubalense e nasceu em Almada.
“O meu pai criava os bolos, mas não lhes dava nome. Havia uma cliente de Setúbal que gostava muito deste bolo e um dia perguntou, ‘Como é que isto se chama?’. Um empregado respondeu-lhe, ‘É o bolo da sua terra’ e ficou”, conta Pedro Pereira, actual responsável, juntamente com a irmã, Leonor. O pai, Álvaro Pereira, foi um dos fundadores da Pastelaria Condestável, a 14 de Agosto de 1969, dia de aniversário da Batalha de Aljubarrota.
A data deu motivo ao imponente quadro que cobre a parede do fundo. À sua frente, um balcão de madeira com várias curvas tem a pátina do século passado, quando aqui se reunia gente das artes ou da resistência. Pormenores do espaço, como as paredes forradas a ripas de madeira, ou o chão, desapareceram, mas os bolos ainda transportam a esse passado.
Além do setubalense, de massa folhada recheado de creme de pasteleiro, Álvaro criou o jacob, com massa folhada, pão-de-ló e doce de ovo, e ficou conhecido pelos garibaldis. Nos anos 1970 vendia centenas por dia, por causa do seu creme leve de merengue e cacau. Ainda os fazem assim. “Nesta casa não entram mixes pré-feitos, fazemos tudo com ovos inteiros”, frisa Pedro. À primeira dentada, já dava para adivinhar.
Pastelaria Condestável
Avenida Dom Nuno Álvares Pereira, 37, Almada
Tel.: 212765926
Das 7h às 20h
Encerra à segunda
O bistro que sabe a casa
Numa transversal à grande avenida que cruza o centro de Almada e leva o trânsito para Cacilhas, o Bistromaria parece estar num muito pacato bairro. O que se passa dentro deste pequeno restaurante prolonga essa sensação. Os clientes conhecem toda a gente pelo nome, escolhem um dos dois pratos do dia e pagam os 12 euros do costume pelo menu de almoço.
“Em Almada ainda não se sente a falta de tascas típicas. Eu cozinho o tradicional português, mas faço-o fora da caixa”, resume Dulce André, que abriu este restaurante de almoços há três anos. Aqui os best-sellers tanto podem ser pastéis de massa tenra com arroz de berbigão, como bifes de atum à Bistromaria, servidos com puré de batata-doce e laranja e cebolada.
No fundo, por muitas invenções e técnicas que Dulce ponha no prato, está lá sempre a referência à comida de casa, confortável e saciante, feita com bons produtos. “A carne que uso é de pequenos produtores, as leguminosas são portuguesas, da Casa das Sementes [em Almada], e o peixe é de uma banca da Praça do Feijó que só tem peixe de arte xávega”, conta.
A terminar a refeição são imperdíveis a torta algarvia, de amêndoa e laranja, ou o pudim de moscatel, feito com o fortificado da região e azeite. Se for mesmo deste bairro, não se vai esquecer da caixa para levar uma sopa de peixe (à quinta-feira) para o jantar.
Bistromaria
Rua Lourenço Pires de Távora, 3, Almada
Tel.: 214051130
Das 12h às 15h
Encerra ao domingo
Preço médio: 15 euros
Uma garrafeira a pente fino
Em 1996, quando abriu, Alexandre Elbling tinha toda a propriedade para chamar à sua casa Garrafeira D’Almada. Não havia quem trouxesse os conhaques, os vinhos de topo e os bons portos para esta margem do rio. Quase trinta anos depois, o nome na sua montra de gaveto continua a fazer sentido. Esta garrafeira é uma das raras casas da especialidade na cidade e é aqui que os almadenses se aconselham.
“A maioria dos meus clientes já não pede, pergunta-me o que sugiro”, conta Alexandre, que não se engasga para recomendar, seja qual for o país (tem aqui excelentes argentinos, italianos e franceses) ou a região portuguesa — de Setúbal, escolhe ter Quinta do Piloto, Quinta de Alcube e Pegos Claros. Destaquem-se ainda as prateleiras mais altas, onde exibe uma pequena parte dos milhares de garrafas de vinho do porto.
“Nada aqui foi comprado por comprar, tudo foi passado a pente fino.” Alexandre explica o que isto significa: uma a duas vezes por mês, junta-se com amigos da área dos vinhos para abrir alguns dos vinhos que recebeu e, sempre que lhe aparece alguma garrafa que ainda não testou, liga a um dos seus contactos especializados. Deixa uma conclusão que soa a garantia: “Actualmente, não há necessidade de vender maus produtos.”
Garrafeira d’Almada
Avenida Prof. Egas Moniz, 2A, Almada
Tel.: 212748715
Das 10h às 13h e das 15h30 às 19h; quinta e sexta, das 10h às 19h
Encerra ao domingo
Uma instituição de excelentes imperiais
Esta instituição é centenária. O painel de azulejos, ao fundo da sala de entrada, anuncia 1890 como a data da fundação do Farol. De uma pequena casa junto ao porto, passou a ex-líbris de Cacilhas, poiso de nativos e dos turistas a quem a viagem de cacilheiro tirou as forças para andar até ao Ginjal.
O marisco vem de viveiros próprios e é uma das razões das romarias, sem surpresas nem invenções: pede-se o camarão da costa cozido, todas as conchas à Bulhão Pato e as sapateiras; pede-se até isto tudo (e mais) de uma só vez, porque as mariscadas (chamam-lhes mistos de mariscos) são o cartão-de-visita da casa. Há combinações para todos os gostos, dos 40 aos 150 euros.
Entre os motivos das visitas deve estar a imperial, que aqui é tão boa que merece ser elogiada. É por um destes copos altos e vivos que se perdoam os cilindros de cerveja, tubulações e outras renovações que mudaram a antiga decoração da sala. Ainda restam o antigo balcão e uma curiosa garrafeira: os buracos na parede da cozinha com os gargalos a espreitar.
O Farol
Largo Alfredo Dinis, 1, R. do Ginjal, 5, Cacilhas (Almada)
Tel.: 212765248
Das 12h às 22h
Encerra à segunda
Preço médio: 25 euros
Um bar gastronómico
Luzes baixas, hip hop nas colunas e uma sala minimalista longe dos outros bares da cidade. No Largo Gabriel Pedro ainda há miúdos a brincar na rua quando Miguel Transmontano se prepara para abrir as portas a mais uma noite no Ophélia. Este ambiente dá-se bem com o que está a tentar construir neste balcão há um ano: uma experiência gastronómica, com tanta técnica quanto descontracção.
“Queria mostrar que em Almada também dá para beber coisas diferentes e que não é preciso ir para Lisboa para beber este tipo de cocktails”, diz o filho da terra. O que se faz por aqui pode ter maior proximidade com uma cozinha do que com o bar que se limita aos gins, caipirinhas e mojitos.
Boa parte do dia é passada a fazer infusões ou os próprios destilados, para chegar a um sabor imaginado. Como o foco é no sabor, é ele que está descrito na carta e não o tipo de álcool que cada cocktail leva. “Não referimos o álcool de base porque normalmente são neutros, não vai ter muita influência no sabor final. Por outro lado, dizer que leva vodka pode afastar alguém que teve uma má experiência com vodka”.
Tudo isto pode parecer demasiado técnico, mas a carta é simples de ler e vai directa ao que interessa. Tomemos o exemplo do Sticky Mango Rice: leva manga, coco, citrinos e arroz basmati e é frutado, redondo e complexo. O Ultra Serafin leva manjericão, sésamo e ginger beer e é herbáceo, cítrico e fresco. Sempre que lhe pedem um mojito, esta é a mais provável sugestão.
Ophélia
Largo Gabriel Pedro, 7, Almada
Tel.: 934603940
Das 20h às 01h, sexta e sábado até às 02h
Encerra à terça e quarta
Uma esplanada para petiscar
Há sete anos que Rita Estevens e João Vasconcelos surpreendem na Cândido dos Reis, a rua dos restaurantes de Cacilhas. Começaram por surpreender quem esperava mais um restaurante de pratos do dia e peixe grelhado — abriram o Boteco 47, um restaurante de petiscos com influências do mundo. A admiração continuou por se aguentarem firmes e fortes abrindo apenas ao final da tarde e para jantares — não querem comprometer a sua qualidade de vida e as duas folgas semanais não são negociáveis.
Hoje o pasmo mantém-se em quem visite a cozinha de onde saem camarões fritos, pregos de novilho ou carpaccio de bacalhau fresco — é uma mão-cheia de metros quadrados com três placas de indução. Vingam-se na esplanada, bem larga, onde servem, explica João, o chef, “Aquilo que gostamos de comer”.
João não precisa de pôr rótulos à sua cozinha — tem uns pratinhos mais portugueses, como as sardinhas alimadas, sedosas e salgadinhas, e outros internacionais que se dão bem na nossa costa, como o ceviche (varia consoante o peixe do dia). Há sempre três petiscos sugeridos, segundo a inspiração e os produtos do momento, mas a carta não muda há dois anos. Os clientes habituais não deixam.
Boteco 47
Rua Cândido dos Reis, 47, Cacilhas (Almada)
W: facebook.com/Boteco.47
Das 18h às 23h
Encerra à terça e quarta
Preço médio: 20 euros
Tasca de cocktails
O Carmen nasceu para ser um bar de vinhos naturais, mas menos de um ano depois apercebeu-se de que não é nada disso que Almada quer. “Começámos a olhar mais para os pequenos produtores que possam oferecer vinhos mais consensuais”, explica Paulo Santos, responsável pelo bar. Os produtores de vinhos no menu vão mudando à mesma velocidade a que muda a carta de cocktails e a de comidinhas gulosas.
Miguel Rodrigues é o responsável pelos pratos de partilha que aqui se servem. A intenção é manter os estômagos forrados enquanto se descobrem vinhos e os cocktails de Paulo Santos. “Isto não é um restaurante”, avisa o cozinheiro almadense, “queremos puxar mais pelo lado de gastrobar, com pratos aportuguesados e que vão à mesa sempre com pão”. São moelas estufadas, é uma sandes de porco panado com picles de pepino e mostarda ou um prego de atum servido com um molho bem apurado, a fazer lembrar carne.
Quanto aos cocktails, Paulo pede desculpa, mas não estão baptizados — “sou péssimo para nomes”, justifica. Com as infusões que prepara durante o dia, cria receitas à noite, depois de ouvir as preferências dos clientes. Num quadro de ardósia à entrada deixa as sugestões do dia, como se isto fosse uma tasca de cocktails.
Carmen Wine Bar
Rua Cândido dos Reis, 130B, Cacilhas (Almada)
Tel.: 915704115
Das 16h às 02h
Encerra ao domingo e segunda
Preço médio: 25 euros
Este artigo foi publicado no n.º 8 da revista Solo.