Eno não sabe tocar (iô), Ken não sabe filmar (iô)
Um músico que não aprendeu música e um cineasta que não aprendeu cinema — e, contudo, dois mestres de ver o mundo de outros modos no Porto/Post/Doc.
“Eu não sei exactamente o que é que o Brian faz”, diz David Bowie em imagens de arquivo do momento em que lançou 1. Outside. Não faz mal, Brian Eno também não sabe tocar: é o próprio que o diz, ele que nos primeiros discos dos Roxy Music era creditado como “Eno: Eno” quando os seus colegas de banda eram “Bryan Ferry: Voz” ou “Phil Manzanera: Guitarra”.
O que o colaborador de gente como Robert Fripp, John Cale ou Bowie, e produtor dos Talking Heads, Devo, U2, Coldplay ou Gift faz, na verdade, é apenas ser Eno, 24 horas por dia, há 75 anos. Por exemplo: andar com um gravador atrás porque, como não sabe tocar (iô), é mais fácil cantar as melodias que lhe aparecem para o microfone. O que dá momentos profundamente embaraçosos quando Eno ouve, entre gargalhadas sentidas, as suas velhas cassetes perante a câmara do documentarista americano Gary Hustwit. Eno que já dissera minutos antes (ou terão sido minutos depois?) que “o problema de um dia se fazer um documentário sobre nós é que acabamos por ter de ir buscar tudo aquilo que guardámos. Por isso, antes que alguém tenha alguma ideia peregrina, deitem já tudo fora.”
Ken Jacobs tem uns anos em cima de Brian Eno, já passou dos 90; mas também ele diz, perante a câmara de Fred Riedel, que não teve, pelo menos a princípio, uma educação formal, mas que nunca hesitou em que seria capaz de pegar numa câmara e fazer um filme. E fez muitos, desde que saiu da Guarda Costeira, quase todos no verdadeiro “centro de arte moderna” que é o seu loft de Brooklyn. Jacobs é uma das figuras centrais da fervilhante cena experimental norte-americana do pós-Segunda Guerra Mundial, alguém capaz de fazer cinema sem película ou 3D sem óculos, limitando-se apenas a manipular acetatos em frente a projectores ou a alternar fotogramas no écrã do computador mesmo perante a incompreensão dos seus contemporâneos. Ao ponto do seu acervo de uma vida ter hoje sido adquirido pelo MoMA nova-iorquino.
Em comum, no entanto, há mais a aproximar Eno e Jacobs — para lá, claro, de filmes sobre ambos estarem no Porto/Post/Doc (um, Eno, de Gary Hustwit, já passou; o outro, Ken Jacobs - From Orchard Street to the Museum of Modern Art, passa esta sexta-feira, às 16h30, no Passos Manuel). As suas formas de olhar para o mundo, de o observar, recusam a evidência ou o lugar-comum, são intransmissivelmente pessoais. São testemunhas de um mundo em mudança, mas também agentes dessa mudança, atentos aos ventos que sopravam ao seu redor e capazes de apanharem boleia das correntes marítimas, mas também apostados em escolher rotas próprias que pareceriam não ir a lado nenhum. Eno fala da pressão que sentiu para se tornar numa estrela pop e do momento “eureka” em que percebeu que não era isso que queria; Jacobs fala dos momentos em que as suas propostas artísticas pareciam não interessar a ninguém, do modo como parecia estar a trabalhar “para o boneco”. Hoje, claro, essa teimosia de estar sempre à frente do seu tempo mesmo quando pareciam numa órbita muito pessoal parece-nos presciente, mesmo inspirada, mas isso é um resultado do tempo que passou e da história que foi escrita entretanto.
Se os percursos de Eno e Jacobs se podem aproximar, os dois filmes no programa do Porto/Post/Doc não podiam ser mais diferentes. Eno é um “documentário generativo”, um objecto único e irrepetível a cada projecção: em parceria com o artista digital Brendan Dawes, Gary Hustwit criou um programa de software que faz ao material que reuniu para o seu documentário aquilo que Eno faz regularmente na música. A partir de parâmetros definidos pela equipa, o programa gera uma iteração diferente do filme para cada sessão, lançando uma “roleta” aleatória por uma base de dados de 168 horas de material, entre entrevistas contemporâneas e material de arquivo de múltiplas origens. Se existem momentos comuns a várias versões, o que é importante reter é que o Eno exibido no Batalha a 23 de Novembro só existiu para o Batalha a 23 de Novembro, e uma outra projecção que possa ter lugar em Portugal será diferente desta. Não se trata de uma mera curiosidade técnica, antes de um caso muito particular de perfeita adequação de forma e função, recusando uma leitura única para propor um caleidoscópio de visões.
Já From Orchard Street to the Museum of Modern Art, que foi estreado em Veneza 2023, explora o formato mais tradicional do retrato documental dobrado de “visita guiada” por um acervo de imagens e objectos, rodado com uma austeridade puramente funcional, registando uma vida que o levou da comunidade judaica de Brooklyn ao centro da vanguarda artística, ao mesmo tempo que desbloqueia chaves de leitura para uma obra que não pode ser mais representativa de uma certa ideia mítica de Nova Iorque. Em qualquer dos casos, o que se prova é que a arte pode estar em todo o lado, desde que saibamos ver por outros lados.