Insectos não estarão a salvo nas novas regras da UE para pesticidas, dizem ambientalistas

Autoridade da União Europeia iniciou processo para rever as orientações que determinarão quando um pesticida pode entrar no mercado. Rede ambientalista receia que artrópodes não fiquem protegidos.

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Os insectos e outros artrópodes podem ser afectados pelos pesticidas Anna Costa
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Um relatório da Rede de Acção de Pesticidas da Europa (PAN; sigla em inglês para Pesticide Action Network) lança um alerta em relação ao trabalho promovido pela Autoridade de Segurança Alimentar Europeia (EFSA, em inglês) no contexto das novas directrizes que vão definir a aprovação de fitofármacos, como os pesticidas, ao nível da União Europeia (UE).

O documento da rede – que reúne membros de 48 organizações de 28 países europeus – centra-se nos artrópodes que existem no ambiente, que cumprem variados serviços dos ecossistemas e não são os alvos dos fitofármacos aplicados na agricultura. No entanto, estes organismos têm vindo a diminuir nas últimas décadas, um problema que também está relacionado com os pesticidas.

A nível da UE, as orientações actuais usadas na aprovação dos fitofármacos, em vigor desde 2002, não são suficientemente estritas para os proteger, o que levou aos Estados-membros a pressionarem para haver alterações. No entanto, a PAN Europa teme que as novas directrizes continuem a ficar aquém do necessário.

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A aplicação de pesticidas num campo de soja, no Brasil Paulo Whitaker/Reuters

O novo “sistema de avaliação tem pouca base científica e beneficia uma agricultura com o uso intensivo de pesticidas, em vez de proteger a biodiversidade como deveria”, lê-se na conclusão do relatório daquela organização, com o título “Licença para matar: uma directriz da União Europeia com consequências de longo alcance”, publicado esta segunda-feira.

Mas a EFSA contesta essa posição. “A nossa prioridade é sempre a saúde pública e o ambiente”, de acordo com a resposta de Edward Bray, porta-voz daquela organização, dada ao PÚBLICO. “Sempre que fazemos uma actualização das nossas orientações, reflectimos o conhecimento científico mais actual.”

Essa é também a posição de José Paulo Sousa, especialista em ecologia terrestre e ecotoxicologia da Universidade de Coimbra (UC). O investigador faz parte do grupo de peritos que está a trabalhar na produção de documentos que irão servir de base para as novas directrizes e é um dos peritos referidos no relatório da PAN Europa. “Fazemos o melhor para usar o conhecimento científico mais actual possível, para sermos o mais protectores possível em termos ambientais”, diz ao PÚBLICO o investigador da UC, referindo que as suas declarações são pessoais e não reflectem necessariamente a posição da EFSA.

A demora das instituições

De acordo com José Paulo Sousa, o trabalho que está a fazer junto com outros especialistas vai produzir até 2030 três documentos importantes para as novas directrizes: um para as plantas, outro para os organismos do solo e o terceiro sobre artrópodes auxiliares, que será o último a sair. Ao longo do processo, haverá espaço para a participação de outros interessados, como a indústria e as organizações não-governamentais. No final, quem decidirá o grau da protecção, com ajuda daqueles documentos, será a Comissão Europeia e os Estados-membros, recorda a EFSA.

“É um caminho urgente, em algumas situações podemos estar a atingir um ponto de não retorno”, diz o investigador português, referindo-se à situação dos artrópodes, admitindo que está “preocupado com uma diminuição da diversidade de insectos”.

Mas é justamente esta urgência que a PAN não reconhece nas instituições europeias. “A nossa experiência com a EFSA e com outras instituições da UE é que em vez de se começar a corrigir aquilo que pode ser corrigido para melhorar rapidamente a situação, lançam-se grandes investigações a longo prazo que depois levam a discussões de longo termo, e leva-se anos para se obter uma pequena melhoria, quando pequenas soluções com grande impacto estão à distância das nossas possibilidades”, defende Martin Dermine, director executivo da PAN Europa, ao PÚBLICO.

Uma das frases-chave do comunicado da organização sobre o novo relatório sublinha essa demora, desde 2002, quando a actual orientação entrou em vigor: “Lei de insectos falha em bloquear um único pesticida em 22 anos”.

A importância dos artrópodes

O maior grupo animal que povoa a Terra, os artrópodes, integra insectos, aracnídeos, crustáceos e os miriápodes, onde se incluem as marias-cafés. O relatório da PAN Europa começa por explicar a grande importância dos artrópodes para os ecossistemas: além de polinizadores, fundamentais para os sistemas agrícolas, são trituradores importantes que facilitam a decomposição da matéria orgânica do solo; depois, dão estrutura e arejam os solos, tornando-o mais capaz de absorver água; por outro lado, são predadores de outros insectos, alguns dos quais pragas agrícolas, além de serem alimento para muitas outras espécies.

“Qualquer mudança na diversidade e abundância dos artrópodes pode ter impactos ecológicos significativos”, explica-se no relatório. A falha na polinização pode ser o problema mais óbvio, mas sem artrópodes a teia alimentar dos ecossistemas torna-se perigosamente frágil. “Isto é particularmente evidente em França, onde as aves dos terrenos agrícolas experimentaram um declínio de 60% nos últimos 40 anos, em parte atribuído à falta de insectos disponíveis”, assinala o relatório, citando um estudo de 2023.

Nos últimos anos, diversas investigações têm demonstrado ter havido um declínio acentuado de insectos em vários locais do mundo. As abelhas são os insectos que mais atenção têm tido. A perda de habitat e o uso de fitofármacos são os motivos mais importantes para o declínio das espécies daquele grupo, dizem os estudos.

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As abelhas têm sido muito afectadas pelos fitofármacos Nuno Ferreira Santos

O relatório explica que os fitofármacos podem ter diversos tipos de impactos, directos e indirectos. Um pesticida, além de matar uma ou várias pragas agrícolas específicas, pode ser prejudicial para outras espécies de artrópodes que não são o alvo dos agricultores. Por outro lado, um herbicida pode matar uma planta que compete pelos recursos necessários para as culturas agrícolas, mas que é importante para a sobrevivência de diferentes espécies de artrópodes. Neste caso, o herbicida causa um impacto indirecto.

Infelizmente, apesar de os fitofármacos serem aplicados em campos agrícolas, têm um alcance maior e extravasam para outros territórios. Um estudo de 2021 feito na Alemanha, que analisou insectos voadores em áreas conservadas da Rede Natura 2000 adjacentes a áreas agrícolas, mostrou que estes insectos tinham, em média, resíduos de 16 pesticidas diferentes. Este cocktail de químicos a que estes animais estão expostos pode exacerbar o efeito nefasto daquelas substâncias.

Orientações problemáticas

As orientações em vigor desde 2002 têm sido muito criticadas. “O método actual para avaliar o risco dos pesticidas para os insectos foi co-escrito com empregados da indústria dos pesticidas”, afirma Martin Dermine. As orientações foram baseadas num workshop patrocinado por “14 organizações – 11 das quais foram empresas de agro-química, incluindo a Bayer e a Novartis”, explica-se no relatório. “Dos 53 participantes, havia mais representantes das companhias agro-químicas (15 pessoas) do que de autoridades regulatórias dos Estados-membros da UE (14 pessoas)”, adianta.

O resultado são orientações com vários problemas. Por um lado, há um pequeno número de espécies de artrópodes (duas a quatro, de seis espécies diferentes) que têm de ser testadas pela indústria para cada novo químico colocado no mercado, o que fica muito longe de representar a complexidade das várias famílias de artrópodes. “Diferentes espécies podem responder de uma forma muito diferente aos pesticidas – algumas mostram efeitos mínimos, enquanto outras sofrem um grande dano”, refere o documento.

Por outro lado, as orientações de 2002 não exigem avaliar os efeitos crónicos nos artrópodes, os efeitos indirectos, nem os efeitos que múltiplos fitofármacos podem ter num mesmo artrópode ao mesmo tempo. Deste modo, muitas possíveis consequências da aplicação dos fitofármacos não são avaliadas.

Por fim, um dos maiores problemas destacados no relatório é o conceito de recuperação. Ou seja, a capacidade que uma população de artrópodes tem para recuperar ao longo de um determinado período após ter sido submetida a um pesticida que tenha feito mal ou provocado a morte de parte ou da totalidade da população.

“O conceito de recuperação é muito conveniente, já que é usado para justificar a colocação de um alto parâmetro para um risco aceitável para os artrópodes não alvo. De acordo com o documento de orientação, se um pesticida matar até 50% dos artrópodes testados (…), deve-se considerar que apresenta um nível de risco aceitável”, refere o relatório.

Ou seja, as orientações assumiam que a população recuperaria passado um determinado tempo, apesar de não haver provas que, de facto, isso aconteceria. Além disso, o conceito não tem em conta a complexidade dos sistemas agrícolas, onde são aplicados diversos químicos ao longo da temporada, às vezes misturados, um ano após o outro.

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Qualquer mudança na diversidade e abundância dos artrópodes pode ter impactos ecológicos significativos, por exemplo na cadeia alimentar das aves Daniel Rocha

Em 2016, um estudo feito pela própria EFSA punha em causa aquele conceito, refere a PAN. “O relatório [da EFSA] conclui que só se pode esperar uma recuperação em casos raros e específicos. Se o ambiente já está sob stress, como nas áreas agrícolas, não se pode esperar que ocorra uma recuperação externa (vinda de fora dos campos de cultivo)”, lê-se no documento da PAN.

Ligações à indústria?

Perante as limitações da orientação e já tendo em conta a Regulação dos Pesticidas de 1107/2009 da UE, que diz que um dos requisitos da aplicação dos pesticidas é o de “não terem efeitos inaceitáveis no ambiente”, os Estados-membros pressionaram para que houvesse uma mudança nas orientações da avaliação, cujo processo está finalmente em andamento.

Para Pedro Horta, da organização ambiental Zero, uma das associações que integra a PAN Europa, esta demora para haver uma mudança na situação está ligada à indústria. “É evidente que existem interesses instalados ligados à venda de pesticidas, há que ter em conta a capacidade de fazer lóbi de organizações como a CropLife”, defende ao PÚBLICO o ambientalista, referindo-se à associação internacional de comércio de agro-químicos.

“O modelo de negócios das organizações que representa [a CropLife] depende da venda continuada de produtos fitofarmacêuticos. Um ambiente mais restritivo de aprovação de pesticidas ou uma larga transição para modelos de produção que não dependem do seu uso sistemático são, evidentemente, uma ameaça a estes interesses”, adiante Pedro Horta, que não esteve ligado à produção do novo relatório.

O documento da PAN Europa constrói-se por cima de todo aquele historial, ao que se soma os documentos que recentemente conseguiu obter da EFSA, a partir das leis de liberdade de informação. O material faz parte dos trabalhos do programa para a avaliação de risco ambiental que a EFSA lançou em 2020, que tem vários grupos de trabalho, um dos quais se dedicou ao avanço da avaliação do risco ambiental dos produtos para a protecção de plantas para artrópodes não-alvo.

Para a PAN Europa, este grupo “vai providenciar relatórios tendenciosos que estão na base de novas orientações fracas”, diz Martin Dermine. Um dos problemas para a organização é, justamente, a ligação à indústria. Este grupo “é composto por cientistas que trabalham e publicam regularmente com a indústria de pesticidas. Eles trabalham para universidades mas os seus laboratórios recebem financiamento da indústria pesticida”, adianta o director-executivo da PAN Europa.

A EFSA rejeita essa acusação, dizendo que avalia os interesses dos peritos envolvidos, que vão desde académicos, passando por especialistas das agências regulatórias nacionais, até pessoal da própria EFSA. “Se encontramos conflitos de interesse durante o nosso controlo, aplicamos medidas estritas para excluir o especialista”, adianta Edward Bray ao PÚBLICO.

José Paulo Sousa também não concorda com a crítica. Embora o investigador tenha feito no passado consultorias a empresas que produzem fitofármacos, como a Bayer, o ecólogo desvaloriza a importância dessa ligação na sua capacidade de ser imparcial. Além disso, recorda que quem trabalha para a EFSA tem que fazer uma declaração de conflito de interesses.

“Quando fiz essa consultoria, era uma consultoria científica no sentido mais puro. Foi simplesmente produzir informação sobre a toxicidade de um determinado produto X, que nós nem sequer sabíamos qual era, em determinadas espécies. Nós testámos, apresentámos os resultados e acabou aí. Nunca mudei nada, nem pus nada num relatório que pusesse em causa a minha ética enquanto investigador, estou de consciência tranquila”, diz.

Distância das instituições

Desde que a EFSA arrancou com o programa em 2020, o investigador português foi estando envolvido no trabalho dos grupos. O trabalho passou por “identificar lacunas de conhecimento científico e propor ideias para projectos que fizessem avançar esse conhecimento”, diz. Incluindo na área dos artrópodes. Há experiências que ainda vão arrancar para o ano. “Neste momento, estamos a fazer uma compilação enorme da base de dados de biodiversidade” dos artrópodes nas áreas naturais, exemplifica, adiantando que é um trabalho que demora tempo.

Toda essa informação estará na base da escrita daqueles três documentos. É por isso que o processo só terminará em 2030, refere José Paulo Sousa, adiantando que os trabalhos para a produção dos documentos acabaram de começar. Segundo a EFSA, em Janeiro do próximo ano será publicado um roteiro deste processo.

No entanto, as conclusões que a PAN tira acerca dos documentos que obteve nem sempre batem certo com as explicações que José Paulo Sousa deu ao PÚBLICO. Uma das questões tem que ver com o perigo das novas orientações afastarem-se dos testes em animais, algo que José Paulo Sousa assegura que não vai acontecer.

“Os ensaios em animais vão sempre ser feitos”, diz o investigador. “Neste momento, o que se está a discutir é que sejam com mais espécies, representativas de um conjunto que sabemos que são vulneráveis.” Ao se testar fitofármacos em espécies mais vulneráveis, é possível inferir-se que, se essas espécies não são afectadas, então as mais resistentes também sobrevivem aos fitofármacos.

Outra questão da PAN é que, mais uma vez, não há indicação que vá ser avaliado o efeito de múltiplos químicos ao mesmo tempo. Neste caso, o perito português compreende a crítica, mas explica a dificuldade de conseguir avaliar este efeito de cocktail. “Temos não sei quantas misturas de fitofármacos no mercado, como é que vou conseguir saber o que vai acontecer no campo do senhor X, que decide aplicar o composto A, B e C, quando o senhor Y, que está no campo ao lado, decide aplicar o composto F, D, e depois o A e o B? Do ponto de vista científico, é muito complicado”, exemplifica.

José Paulo Sousa recorda que o processo está longe de terminar e os documentos que foram produzidos até agora não estão “escritos na pedra”. Refere, no entanto, que acha importante que organizações como a PAN façam este “contraponto”.

Mas é esta distância que existe entre as instituições europeias e organizações ambientalistas como as que integram a rede europeia que provoca questões. “A relativa opacidade com que os guias estão a ser redigidos não inspira confiança”, defende Pedro Horta, que gostava de ver um processo aberto desde o início.

“Os pontos-chave são a transparência e a abertura do processo à participação, logo desde um momento precoce de avaliação da adequação das orientações a rever. É algo que não está a acontecer.”