Destruir as Selvagens para obter lucro “nunca irá beneficiar a população da Madeira”

Ecólogo marinho da National Geographic Enric Sala diz que o mar à volta das Selvagens é o mais bem preservado da Macaronésia, fornecendo peixe para fora da reserva. Mas só se se mantiver intocado.

Selvagens Islands, Portugal, At Sea September 2015 (also known as Savage Islands) Little was known about the Selvagens’ undersea environment prior to the September 2016 Pristine Seas expedition, launched in partnership with the Waitt Foundation. But over the course of the ten-day expedition, the team found that the open waters around the islands appear to be a vital waypoint for migrating fish and mammals in the Atlantic and that intermediate depths and reefs may serve as important nursery habitat.
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Um cardume nada na reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Selvagens Islands, Portugal, At Sea September 2015 (also known as Savage Islands) Little was known about the Selvagens’ undersea environment prior to the September 2016 Pristine Seas expedition, launched in partnership with the Waitt Foundation. But over the course of the ten-day expedition, the team found that the open waters around the islands appear to be a vital waypoint for migrating fish and mammals in the Atlantic and that intermediate depths and reefs may serve as important nursery habitat.
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Um mergulhador na reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Selvagens Islands, Portugal, At Sea September 2015 (also known as Savage Islands) Little was known about the Selvagens’ undersea environment prior to the September 2016 Pristine Seas expedition, launched in partnership with the Waitt Foundation. But over the course of the ten-day expedition, the team found that the open waters around the islands appear to be a vital waypoint for migrating fish and mammals in the Atlantic and that intermediate depths and reefs may serve as important nursery habitat.
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Um golfinho salta no mar na reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Selvagens Islands, Portugal, At Sea September 2015 (also known as Savage Islands) Little was known about the Selvagens’ undersea environment prior to the September 2016 Pristine Seas expedition, launched in partnership with the Waitt Foundation. But over the course of the ten-day expedition, the team found that the open waters around the islands appear to be a vital waypoint for migrating fish and mammals in the Atlantic and that intermediate depths and reefs may serve as important nursery habitat.
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O sol junto do horizonte na região das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
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Quando, em Maio de 2022, foi aprovado o novo regime jurídico da Reserva Natural das Ilhas Selvagens e aquela área protegida foi ampliada de 97 para 2677 quilómetros quadrados, tornando-se então na maior área marinha do Atlântico Norte (entretanto, ultrapassada pela reserva marinha nos Açores), não se esperava que, passados dois anos, a expansão pudesse estar a ser ameaçada pela política partidária madeirense.

A Reserva Natural das Ilhas Selvagens data de 1971, quando o arquipélago e o mar à volta até às duas milhas ficaram integralmente protegidos, numa altura em que o país estava a dar os primeiros avanços na conservação da natureza. As águas da reserva apresentavam “um interesse científico excepcional”, de acordo com o decreto-lei de então.

Esse passo deu frutos até hoje. “A reserva que já existia assegurou que a vida marinha prosperasse ali”, diz ao PÚBLICO Enric Sala, fundador do programa Mares Prístinos da Sociedade National Geographic, que fez uma expedição àquela região antes daquela expansão para determinar a sua importância do ponto de vista ecológico. “É o ecossistema marinho mais bem preservado em toda a Macaronésia”, explica o ecólogo marinho, referindo-se à região que engloba os Açores, a Madeira, as Canárias e Cabo Verde. Enric Sala tem-se dedicado à protecção do oceano nas últimas décadas e reconhece uma área conservada. “O que encontrámos na antiga reserva das Selvagens é uma janela para o passado.”

Aquela expedição deu bons argumentos para se fazer a ampliação da reserva em 2022, que agora se situa até às 12 milhas náuticas à volta das ilhas, e expande integralmente a protecção de ambientes marinhos e ecossistemas que existem a maior profundidade, anteriormente não protegidos. Além disso, a reserva é um contributo importante para Portugal alcançar a meta de 30% da sua área marinha protegida até de 2030, de acordo com o Quadro Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal, aprovado por 196 países em 2022 em Montreal, no Canadá.

Mas em Julho último, pressionado pelo Chega, o Governo Regional da Madeira autorizou a captura do atum-gaiado na reserva para efeitos de investigação até Dezembro. Parte dessa captura pode ser comercializada, como se denunciou em Agosto, numa carta aberta publicada na Nature, assinada por Enric Sala e subscrita por quase 300 cientistas, muitos deles portugueses, que condenam essa decisão.

O Chega quer dar um passo maior e reverter, através de decreto, a protecção da reserva de volta para as duas milhas. No entanto, a situação do Governo regional, sujeito a uma moção de censura em Dezembro, adia aquela vontade. Mas para Enric Sala, a hipótese de se voltar atrás é um enorme erro: “Se a indústria pesqueira quiser pescar atum na reserva, acho que eles estão a dar um tiro no pé.”

Qual a importância da reserva das ilhas Selvagens?
Fizemos uma expedição do programa Mares Prístinos da National Geographic em colaboração com a Fundação Oceano Azul e descobrimos que é o ecossistema marinho mais bem preservado em toda a Macaronésia. É por ser tão remoto e pelo facto de não estar habitado que foi mais bem preservado do que qualquer outro local na região. É por isso que apoiámos o Governo Regional da Madeira a expandir a reserva para o tamanho actual. É uma jóia, uma jóia biológica no Atlântico Leste.

Qual foi o seu papel nesse processo?
Realizámos uma investigação científica e fornecemos um relatório científico ao Governo da Madeira e também produzimos conteúdos mediáticos sobre a reserva.

Golfinhos nadam no mar, na reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Uma garoupa-verdadeira na reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Um ambiente marinho da reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Um destroço de um navio de 1971 nas Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Um cardume de peixes-papagaios-europeus Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
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Golfinhos nadam no mar, na reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas

O que encontraram?
Encontrámos populações de peixes e invertebrados que eram mais abundantes do que em qualquer outro local da região. Eram mais abundantes do que nas ilhas principais da Madeira, incluindo espécies de peixes que são alvo de exploração comercial. A reserva que já existia assegurou que a vida marinha prosperasse ali. Mas vimos também que o tamanho da reserva não era o suficiente, porque não incluía os habitats mais profundos. Além disso, há espécies como os atuns que migram para a reserva para se alimentar. Por isso, esta é uma área importante para estas espécies comerciais.

E porque é que esta região já era tão rica?
Os ecossistemas perto das ilhas eram bem protegidos e foi aqui que encontrámos mais garoupas do que em qualquer parte das águas da Madeira. A abundância da população de lapas entre marés nas Selvagens não se encontra na Madeira ou na ilha das Canárias, que foi reduzida por causa da exploração humana. O que encontrámos na antiga reserva das Selvagens é uma janela para o passado, mostrou-nos o que é que a região poderia ser.

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O ecólogo marinho Enric Sala Rebecca Hale/National Geographic

Porque é que estas áreas protegidas são importantes para o resto do oceano?
Hoje, 8% do oceano está sob algum tipo de protecção. Mas apenas 3% está totalmente protegido de pesca e de outras actividades extractivas e prejudiciais. Os países do mundo, incluindo Portugal, aceitaram um acordo de proteger pelo menos 30% das águas até 2030. Por isso, temos um grande caminho a percorrer. Não só temos de aumentar o nível de protecção das áreas protegidas, mas também temos de proteger muitas novas áreas. Temos de quadruplicar as áreas marinhas protegidas nos próximos seis anos.

Fizemos estudos à procura de onde esses 30% deveriam estar, qual é o topo das prioridades da protecção. Descobrimos que cada país tem áreas dentro das suas águas com uma importância global, porque a vida marinha que se encontra na Madeira, em Portugal, ou nas Selvagens, não tem nada que ver com a vida marinha que se encontra na África do Sul, na Indonésia ou na Austrália. Por isso, cada país tem ecossistemas marinhos absolutamente únicos. Se queremos que a vida marinha continue a prosperar e a nos sustentar, temos de proteger áreas que representam os maiores ecossistemas marinhos a nível mundial. Por isso é tão importante proteger as Selvagens, porque é este ecossistema único.

Mas há outras vantagens?
Temos visto que a protecção também ajuda os recursos pesqueiros. Quando se protege um local, os peixes crescem mais e vão produzir um número exponencial de ovos e bebés, e há um excesso de peixes que transborda para áreas à volta, ajudando a restabelecer essas áreas de peixe. Isto funciona tanto para espécies que se movimentam pouco, como as lagostas, como para as que nadam grandes distâncias, como o atum.

O melhor exemplo está no centro do Pacífico. Há uma área marinha protegida gigante que tem 1,5 milhões de quilómetros quadrados, é o Monumento Marinho Nacional Papahānaumokuākea, situado nas ilhas noroeste do arquipélago do Havai. Por causa dos atuns que transbordam para fora da reserva, a frota pesqueira dos Estados Unidos consegue apanhar mais 54% de atuns fora daquela região protegida. E os lucros são os mais altos, ao contrário de outras áreas no Pacífico, em que não há regiões protegidas e o número de atuns pescados não está a aumentar, em muitas áreas diminui. Por isso, estas áreas onde não se pode pescar peixes são chave para restabelecer os stocks de pesca que estão a ser esgotados ou colapsaram em grande parte do mundo.

Tanto nos seus estudos como nas declarações que faz repete a importância de não haver qualquer tipo de pesca nas áreas protegidas. Porquê?
Se há pesca comercial dentro de uma área protegida, então ela não é protegida e não é diferente de áreas não protegidas. Há exemplos em todo o mundo, quer sejam pequenas ou grandes reservas: as áreas que mais benefícios trazem às pessoas, à pesca, à economia, são as áreas completamente protegidas, porque permitem que os peixes realmente recuperem e alcancem estas enormes quantidades.

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Uma anémona-gigante e um camarão no mar da reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas

Estas áreas marinhas protegidas permitem as espécies alcançarem os seus tamanhos máximos. Em expedições que fizemos em todo o mundo, vimos peixes com tamanhos maiores do que aqueles que a ciência pensa que são possíveis, porque permitimos que eles cresçam. Isso nunca acontece nas áreas onde eles são pescados, mesmo havendo uma gestão. São as fêmeas grandes que produzem a maioria dos bebés que restabelecem a população. Se não deixarmos os peixes crescerem até ao seu tamanho máximo e reproduzirem-se ao seu potencial máximo, não há futuro para os stocks de pesca.

Até a pesca artesanal deve ser impedida nas áreas protegidas?
Nenhuma pesca deve ser permitida nas áreas de protecção total. Depois, deverá haver outras áreas onde a pesca artesanal é permitida e ainda outras áreas onde a indústria pesqueira é permitida. A ciência é muito clara. É por isso que os países em todo o mundo, incluindo Portugal, aceitaram os 30% até 2030. Na realidade, os nossos estudos mostram que protegendo uma área de 30% vai fornecer mais peixes do que os peixes que agora são pescados em todos os lugares. Toda a gente ganha. A pesca vai ficar melhor se protegermos as áreas certas.

Acha que esse estatuto está, neste momento, comprometido na reserva das Selvagens?
Parece haver um interesse em abrir a reserva à pesca de atuns. Acho isso um grande erro. Não faz sentido a nível ecológico nem económico. A reserva hoje é apenas 0,6% da zona económica exclusiva da Madeira e é uma área importante que não se encontra em mais nenhum lado, quer na Madeira, quer no mundo. Antes da expansão da reserva, através da informação por satélite, descobrimos que apenas 1% do esforço de pesca ocorria naquela área. A frota de pesca da Madeira, ou de Portugal, pode pescar nos restantes 99% da zona económica exclusiva da Madeira. Os atuns migram centenas, ou mesmo milhares de quilómetros todos os anos. A frota pode pescar fora da reserva e é isso que os norte-americanos estão a fazer tão bem [no Pacífico]. Eles estão a pescar mais atum porque deixam a reserva em paz.

Se eu fosse a indústria de pesca, pediria uma expansão ainda maior da reserva das Selvagens, para que houvesse uma área maior para o atum crescer e repor a população, para que eles possam pescar mais na área fora da reserva.

Um mergulhador no mar da reserva das ilhas Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Um peixe-cão encontrado na reserva marinha das ilhas Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Uma estrela-do-mar-azul-espinhosa encontrada no meio de rochas Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
Um cardume de patruças encontrado na reserva marinha das Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
A reserva marinha das ilhas Selvagens cresceu em 2022 Andy Mann/National Geographic Pristine Seas
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Um mergulhador no mar da reserva das ilhas Selvagens Andy Mann/National Geographic Pristine Seas

E como avalia a vontade do governo da Madeira?
Se a indústria pesqueira quiser pescar atum na reserva, acho que eles estão a dar um tiro no pé. As pessoas visitam a Madeira porque adoram a sua natureza, acreditam que é um local consciente a nível ambiental, visitam a bonita floresta da Laurissilva e vão fazer mergulho. Mas se abrirem a sua jóia marinha à pesca, a sua área marinha mais importante, que é pequeníssima comparada com o resto da área marinha da Madeira, vai haver um enorme dano na reputação da Madeira.

Um deputado da Madeira do partido de direita radical, o Chega, disse que se a pesca fosse proibida ali, barcos pesqueiros de outros países, como da China ou de Espanha, iriam explorar aquele recurso. Isto é verdade?
Isso não é verdade. Se Portugal tem uma área onde a pesca é proibida, então ninguém pode pescar ali. Se um barco pesqueiro espanhol ou de outro país pescasse na reserva, isso seria ilegal. E o Governo poderia processar esse barco. Não há embarcações pesqueiras a pescar na área das Selvagens. Se a China quisesse pescar em águas portuguesas, teria de ter um acordo com Portugal e a União Europeia. Por isso, isso é uma mentira. Se uma área marinha portuguesa é protegida, essa área é protegida e ninguém de nenhuma nação pode pescar ali, ponto final. É lei.

Mas a pesca ilegal é um risco?
Há sempre um risco de haver pesca ilegal, mas isso serve para todas as áreas protegidas. Uma área protegida é tão boa quanto é a aplicação legal e o seu controlo. Até agora, a gestão da reserva tem feito um trabalho fantástico em proteger aquele lugar. Os intervenientes ilegais são tentados a pescar nas áreas protegidas porque é lá que encontram o peixe. Terminámos um estudo que mostrava que a maioria das áreas onde é proibido pescar é respeitada. É da responsabilidade dos governos assegurarem que se aplica a lei.

Há uma desculpa de pesquisa científica para se justificar a caça de atum. Como evitar?
Isso é como os japoneses, quando disseram que matavam todas aquelas baleias anualmente para a investigação científica e depois vendiam a carne de baleia. Era claro que não era uma questão científica, era apenas uma operação comercial para o lucro de alguns indivíduos mascarada de investigação científica. Se for necessário fazer alguma investigação, pode ser feito no resto dos 99,4% das águas da Madeira. Não há desculpa. O argumento não tem pernas para andar.

A Madeira deveria ter orgulho por ter as Selvagens, deveria ter orgulho daquilo que fez para proteger algo tão importante que mais ninguém tem no mundo. Isto é o mesmo que ter o que resta da floresta de Laurissilva, que é uma jóia para a humanidade. A reserva marinha das Selvagens é a mesma jóia no oceano. E destruí-la para alguns obterem lucro nunca irá beneficiar a população da Madeira.