Para Lavareda, mundo vive sob domínio do medo. “A liberdade entrou em quarentena”

Cientista político afirma que a extrema-direita está aprisionando os eleitores à base da mentira, a ponto de se normalizar a violência e até a destituição de governos eleitos democraticamente.

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Antonio Lavareda, cientista político e sociólogo, afirma que o mundo está dominado pelo medo disseminado por meio das redes sociais Arquivo pessoal
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O medo é hoje a principal arma usada pela extrema-direita para chegar ao poder. Na avaliação do cientista político e sociólogo Antonio Lavareda, presidente do Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (IPESPE), foi esse instrumento, disseminado de forma contundente pelas redes sociais, um dos fatores que mais pesaram para a recente eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos.

“No Ocidente, que é onde a minha vista alcança, a questão da liberdade nesses tempos remete, sobretudo, ao medo”, diz ele, recorrendo ao professor sul-coreano-alemão, Chul Han, para reforçar seu pensamento. Diz o acadêmico: “A liberdade não é possível onde reina o medo. Medo e liberdade se excluem mutuamente”.

Para Lavareda, o medo aprisiona a sociedade, deixa a esperança em quarentena, “sobretudo, a esperança ativa, comprometida com movimentos de busca do progresso”. Na visão dele, o sentimento difuso do medo, que tem prosperado nesse primeiro um quarto do século XXI, é difundido regular e sistematicamente, com organização, disciplina e método, pela extrema-direita, em diferentes versões nacionais. “Trata-se de um medo arquitetado”, frisa.

O cientista político acredita que as velhas formas de supressão das liberdades, agora, se somam à “estratégia do iliberalismo”, promovida pela ultradireita internacional. “Nela, a democracia é corroída por dentro, conforme o modelo exitoso da Hungria, de Viktor Orbán”, ressalta. Ele acredita que o sucesso dessa estratégia se baseia na promoção desenfreada do medo, que, quando assume caráter coletivo, é polarizador, pois amplia as divisões dentro da sociedade.

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Primeiro-ministro da Hungria, o ultradireitista Viktor Orbán é acusado de ter corroído a democracia do país CHRIS KLEPONIS / EPA

“O medo politiza e aprofunda diferenças que antes se viam pouco valorizadas, eram toleráveis e conciliáveis. Produz e dissemina uma sensação de instabilidade que termina por se materializar efetivamente, estimulando descontentamento e protestos, conflitos e até derrubadas de governos”, afirma Lavareda. “Esse medo redesenha o debate público e leva os eleitores a abandonarem seus partidos e lideranças tradicionais, galvanizando o apoio a outsiders, em geral, líderes autoritários que lhes acenam com segurança e proteção”, acrescenta.

Aplausos a políticas repressivas

O sociólogo, que participou, nesta terça-feira (26/11), da Conferência Internacional O Porto da Liberdade, promovida pelo Instituto Português de História e Cultura Local, assinala que o medo acaba por justificar, para muitas pessoas, políticas repressivas, com a aceitação da restrição de direitos e sob aplausos diante da hipótese de governos totalitários. Ele enfatiza: “Nos tempos atuais, para promover o medo e fazer adoecer a democracia representativa, os venenos são atualizados, bem como a posologia adotada. Envolve doses elevadas de desinformação deliberada e disseminação maciça de fake news na internet”.

Lavareda faz um alerta assustador ante tal movimento: “Não há antídotos 100% eficientes para esses venenos. Não há como evitá-los de todo. A emergência das redes sociais tornou isso impossível. Mas é necessário coibi-los, limitá-los em alguma medida”. Para ele, um dos caminhos para a contenção de damos passa, sobretudo, pela regulação das plataformas digitais, como fez a União Europeia.

“As deepfakes criadas por inteligência artificial e os milhões de usuários e bots (robôs), que distribuem informação apócrifa em redes criptografadas de ponta a ponta, agravaram o problema. Elevaram o desafio a um patamar bem superior ao que foi no passado o de controlar a propaganda política em jornais, rádios e tevês”, frisa Lavareda. Ele reconhece, porém, que, em países como Brasil e Estados Unidos, há uma grande resistência à regulação de plataformas e redes.

Isso acontece, complementa o cientista político, porque a extrema-direita paralisa a agenda nos respectivos Congressos. “Afinal, é difundindo o medo e, a partir dele, agredindo ora as minorias, ora o establishment, mesmo quando estão claramente associados aos interesses das elites econômicas, que os novos populistas se valem dos algoritmos das redes para conquistar apoio eleitoral”, diz. E emenda: “A combinação dos interesses econômicos das plataformas e da força da ultradireita nesses países torna muito difícil caminhar na direção de uma regulação”.

Era das incertezas nos EUA

O brasileiro chama, ainda, a atenção para o que pode ocorrer nos Estados Unidos a partir de 20 de janeiro de 2025, quando Donald Trump tomará posse como presidente. “A rigor não é necessário qualquer exercício adivinhatório, pois basta reler os discursos e rever a propaganda da campanha dele. Até o momento, temos um show de coerência. Os nomes anunciados para o novo ministério, por mais bizarros que pareçam a muitos, são perfis totalmente congruentes com a retórica do então candidato”, destaca.

Para Lavareda, é mais do que justificado o temor de um retrocesso significativo na agenda de combate ao aquecimento global, mesmo com a multiplicação dos desastres climáticos; do anunciado distanciamento dos líderes europeus, agravado pelo maior alinhamento com a Rússia; e de uma redução substancial do apoio à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e, especialmente, à Ucrânia, “que será levada à paz de joelhos”.

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Ao darem novo mandato a Donald Trump, norte-americanos empurraram os Estados Unidos para a era das incertezas Carlos Barria/ Reuters

Na agenda interna dos Estados Unidos, o sociólogo lista, como consequência da eleição de Trump, deportações em massa de indocumentados; perseguição a funcionários que, no passado, não foram complacentes com iniciativas ilegais; demissões em massa de servidores públicos, a pretexto de reduzir a burocracia; posturas negacionistas na condução da saúde pública; e, até mesmo, a extinção do Departamento Federal de Educação. “Tudo isso sob a direção e batuta ideológica da direita-tech, representada por Elon Musk e J.D. Vance”, frisa.

O cientista político não tem dúvidas de que Trump voltou à Casa Branca porque que o medo já estava suficientemente instalado na alma dos norte-americanos durante a votação. “Os eleitores foram às urnas sob dois signos combinados: o do medo generalizado de que sua democracia estivesse em perigo; e, um segundo, potencializado pelo primeiro, o da ansiedade específica movida, principalmente, pelo descontentamento com o governo do dia, com 62% acreditando, equivocadamente, que a economia estava piorando e 46% insatisfeitos com sua situação econômica contra apenas 25% de satisfeitos”, detalha.

Segundo Lavareda, se a economia jogou, mais uma vez, um papel central no voto dos norte-americanos, o descontentamento com ela ocorreu desta vez agravado por um clima de medo, amplificado por fake news poderosas, mesmo quando desmentidas de forma contundente pelos fatos. “Haitianos ‘comendo gatos’ e votando em massa; vídeos produzidos na Rússia denunciando operações irregulares do FBI; ‘democratas apoiando o aborto até depois do nascimento’; Estados Unidos ocupados por ‘hordas de estrangeiros criminosos importados pelo governo das masmorras do terceiro mundo’. Todas, notícias falsas”, assinala.

Para o sociólogo, o certo é que a inflação aliou-se ao medo e os norte-americanos deram lugar, com o novo governo Trump majoritário na Câmara e no Senado, e respaldado pela maioria conservadora nos Suprema Corte, a uma era de incerteza como poucas vezes se viu antes. “Nesse momento, não é exagero afirmar, voltando à metáfora do professor Chul Han, que a liberdade do mundo entrou em quarentena”, conclui.

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