A violência doméstica arrasa famílias, mas há caminhos para se livrar desse crime

No Dia Internacional para Eliminação da Violência Contra a Mulher, relatos de superação contra agressões, abusos e humilhações. Entidades se mobilizam em favor delas.

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Violência contra mulheres não para de crescer. Brasileiras criam instituições para resgatar vítimas desse crime Ines Ventura
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Foram cinco anos de humilhação diária, abusos psicológicos e várias invasões à casa da baiana Dayane da Silva Dias, 43 anos. A violência partia do homem que ela havia escolhido para dividir a vida. O sonho de ter um casamento feliz a alimentou por um bom tempo, mas a realidade se impôs em Portugal, onde havia decidido morar e abrir um estabelecimento comercial.

"Vivi anos de terror. O que era um sonho se transformou em pesadelo. Não havia amor daquele homem por mim", diz Dayane, natural de Feira de Santana. Ela ainda cura as feridas. "O homem que eu pensava que amava me levou a perder a vontade de viver. Ele me tirava a paz, era maltratada e desrespeitada", conta. Os dois chegaram a compartilhar a mesma casa e os negócios, dos quais ela era a única dona.

Tanto sofrimento fez com que a baiana buscasse uma forma de se libertar do que ela considerava uma prisão e de usar aquela dor para ajudar outras mulheres a não aceitarem violência. "Até procurar ajuda, não tinha plena consciência da gravidade do que estava vivendo", relata. O despertar ocorreu depois de um contato com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima de Violência (APAV).

Nesta segunda-feira (25/11), Dia Internacional para Eliminação da Violência contra as Mulheres, a brasileira faz um alerta para aquelas que são agredidas e têm direitos básicos aviltados. A dura realidade da violência dentro da própria casa, assinala Dayane, é um fato que não se pode mais omitir.

Sedução, a arma

Segundo Dayane, tudo começou quando, no trabalho dela, um café, um homem passou a cortejá-la, sempre muito sedutor. “Ele aparecia todos os dias no café. Era muito atencioso, e me chamou a atenção, até que iniciamos um relacionamento”, conta. Os problemas começaram quando ele resolveu levar os pertences para a residência dela, sem que ela desse autorização.

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Dayane da Silva Dias viveu cinco anos de violência doméstica, até que conseguiu se livrar do agressor, que havia se apossado da casa e do estabelecimento comercial dela Arquivo pessoal

O homem, um português de 40 anos, cujo nome Dayane não menciona, decidiu que tinha de assumir controle total da vida dela, da filha, menor de idade, e do estabelecimento comercial. “Ele invadiu a minha casa, passou a controlar a minha loja, a querer ser dono da minha vida. Ele foi tão invasivo, que chegou a nos filmar em cenas íntimas. Foi aí que pensei que a vida não valia mais a pena, porque não aguentava mais aquilo”, revela.

Mesmo Dayane pedindo para ele sair da casa dela, o homem não se retirava. "As humilhações foram tantas, que perdi o brilho de viver”, diz. A situação só mudou quando a brasileira chamou os parentes dela para retirá-lo da casa. “Agora, cerca de seis meses depois, estou me sentindo bem. Minha rotina mudou. Conto a minha história sem me desesperar, e já perdi 10 quilos”, afirma. “Aquele homem minou minha autoconfiança, e só consegui me libertar quando ele saiu da minha vida”, destaca.

Dados da violência

A APAV registrou, no primeiro semestre deste ano, cerca de 15 mil casos de violência doméstica em Portugal, um aumento de 2% em relação a igual período de 2023. Desse total, 78% são relativos à violência de gênero, conforme o website da entidade.

O aumento desses crimes, segundo Daniel Cotrim, diretor da organização, pode ser explicado pelo fato de a APAV ter “ampliado as campanhas de sensibilização” e por ter “criado serviços que a aproximam mais das pessoas”. Ele destaca que, por meio de estruturas itinerantes, a APAV vai a localidades onde, normalmente, não há este tipo atendimento às mulheres.

“Quanto mais próximos os serviços de apoio estiveram das comunidades, mais fácil será para as pessoas denunciarem”, frisa. As estatísticas relativas a 2023 indicam que a APAV apoiou 31.117 vítimas de violência doméstica, das 64.899 denúncias registadas. Quase metade (48,3%) das vítimas que chegaram à instituição, conforme Cotrim, alegou violência doméstica e pediu ajuda por iniciativa própria, 46,6% apresentaram queixa/denúncia junto à Polícia de Segurança Pública (PSP).

Apoios se multiplicam

Com a pedagoga social Ana Francisca à frente, a Reeguer-te definiu como finalidade básica sensibilizar e empoderar as mulheres contra a violência doméstica. “Temos um espaço para compartilhamento de experiências, promover dinâmicas de grupo e momentos de reflexão, visando proporcionar o autoconhecimento e o empoderamento feminino contra a violência”, explica.

Nascida em Moçambique e há 24 anos em Portugal, Ana Francisca relata que a Reeguer-te surgiu da constatação dos abusos contra mulheres, verificados, em muitos casos, na infância, na adolescência e na vida adulta. A pedagoga, que, por um bom tempo, sofreu violência doméstica, ressalta que, após a pandemia do novo coronavírus, “passou a criar pequenos círculos de mulheres vítimas desse crime”,

Segundo Ana Francisca, o que se percebeu, nas conversas, é que não havia clareza acerca dos problemas que as mulheres estavam abraçando. Com o passar do tempo, a entidade percebeu que deveria mudar o conceito e construiu as “testemunhas de superação”, com depoimentos de mulheres que se livraram da violência.

O projeto, de acordo com a pedagoga, tornou-se "uma voz com o intuito de contribuir com a luta das mulheres”, o que inclui cursos para a formação de técnico de apoio à vítima e de técnico de dependência emocional e comportamentos abusivos. "Queremos, assim, chegar ao maior número de homens e mulheres, para que, juntos, possam erradicar o crime de violência doméstica", afirma.

Essa violência, frisa Ana Francisca, "arrasa famílias, esvazia a dignidade, a auto-estima e a autoconfiança das mulheres". Na avaliação dela, "é importante criar uma sociedade mais informada, mais forte e mais resiliente".

Reconstruir vidas

Presidente executiva da Associação Supera_te, Cátia Sofia Silva, 41, tem como missão, há 17 anos, “reconstruir vidas”. Formada em nutrição, ela faz questão de ressaltar que a vida lhe guiou para outros caminhos e, diante da violência doméstica persistente, foca na denúncia de maus tratos, mas, também, na proteção da vida das vítimas. "Às vezes, não é só fazer a denúncia da violência praticada contra a mulher, é preciso retirá-la do ambiente contaminado”, assegura ela, que, com Ana Francisca, participa, no próximo sábado, às 15h, de palestra sobre violência contra a mulher, na Fábrica Braço de Prata, em Lisboa.

A orientação da Supera_te, diz Cátia, é acompanhar os fatos geradores da violência doméstica, desde a vida passada da mulher, quando jovem até a idade adulta. A especialista se detém sobre um caso atual que preocupa bastante o grupo, em que um casal de vida aparentemente estável, com um filho de um ano de idade, vive um momento de grande instabilidade.

Ela conta que a mulher foi ao cabeleireiro e, quando retornou para casa, o marido não a deixou mais entrar na residência. Apesar de relatórios oficiais indicarem alienação parental por parte do pai da criança, a Justiça, até agora, não resolveu a questão. Todas as semanas, segundo Cátia, a entidade recebe de quatro a seis casos de violência e que envolvem escolas e até a polícia.

Entre as brasileiras que vivem em Portugal, o maior problema denunciado ao Consulado do Brasil em Lisboa é a disputa pela guarda dos filhos. Em outubro, a maior parte dos 80 pedidos de ajuda psicológica envolveu esse tema, segundo o cônsul-geral, Alessandro Candeas. Na quarta-feira (20/11), ele se reuniu com o Comitê de Mulheres Brasileiras em Portugal, que traçou um quadro preocupante sobre o que ocorre em território luso.

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