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A crise dos dentistas brasileiros e o impacto nas relações entre Brasil e Portugal
Principal articulador do lado português para o acordo que selou a paz entre os dois países, Fontes de Carvalho fala, pela primeira vez, sobre o que se passou por trás das negociações.
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O dentista Manuel Fontes de Carvalho, 71 anos, tem histórias para contar. Nenhuma delas, porém, o fascina tanto quanto a crise que envolveu os dentistas brasileiros em Portugal na segunda metade dos anos de 1980. “Pela primeira vez posso dizer que, por pouco, muito pouco, as relações diplomáticas entre os governos brasileiro e português não foram rompidas. Foi preciso um esforço muito grande dos dois lados, cada um cedendo um pouco, para que se chegasse a um consenso e não houvesse o rompimento”, diz.
Tudo começou entre 1985 e 1986, numa reunião da Ordem dos Médicos no Porto. À época, os dentistas portugueses estavam inseridos naquela representação profissional. “Havia a Seção de Medicina Dentária, mas, estávamos alojados na Ordem dos Médicos”, diz. “Um belo dia, o então assessor de imprensa da Ordem, José Mendonça, que também era treinador de futebol, pediu para falar comigo. Ele me perguntou: ‘Você sabia que há 2 mil dentistas brasileiros ilegais em Portugal?’. Imediatamente respondi que nunca tinha ouvido falar sobre aquilo. Não sabia de onde vinha aquela informação”, acrescenta.
Não satisfeito, o assessor de imprensa insistiu com Fontes de Carvalho: “Ele me indagou sobre o que eu achava de ele passar aquela informação para os jornais. Respondi: faça o que achar melhor”. No dia seguinte, já em Lisboa, onde tinha uma reunião profissional, ele foi até um quiosque no aeroporto para comprar algumas publicações vespertinas, muito comuns à época. “Em uma delas, a manchete dizia: ‘2 mil dentistas brasileiros ilegais em Portugal’. Foi como tudo começou, sem nenhuma base formal”, afirma. A insistência da imprensa em relação ao tema acabou por se transformar em um rastilho de pólvora, abrindo uma crise internacional.
A agitação cresceu. “Vivíamos em período em que havia um deficit imenso de dentistas em Portugal, pois eram restritos os cursos de formação. Havia um contingente de portugueses que exerciam ilegalmente a atividade de dentista. E eles eram aceitos pela sociedade e pelas autoridades. Todos fechavam os olhos para aquela situação”, relata Fontes de Carvalho. “Depois, veio a questão dos dentistas brasileiros. Tudo isso provocou tumulto”, frisa. Na tentativa de se protegerem, os profissionais brasileiros criaram a Associação Brasileira de Odontologia, Seção Portugal, que foi aceita como um braço da Associação de Odontologia do Rio de Janeiro.
Crise atravessou o Atlântico
Naquela altura, a crise já havia atravessado o Atlântico — e com força. “Um dia, recebemos um pedido do governo português para termos uma conversa com a nossa congênere no Brasil, o Conselho Federal de Odontologia (CFO), com a qual sempre tivemos boas relações. O assunto havia chegado à Comissão Europeia, uma vez que Portugal estava em processo de adesão ao bloco”, lembra. “Diziam muita coisa a nosso respeito, que éramos corporativistas, que perseguíamos os brasileiros, que púnhamos os brasileiros na Justiça, o que não era verdade. Isso provocou uma crise diplomática com o Brasil, justamente no momento em que Portugal aderia à União Europeia”, assinala.
No meio da guerra de versões, havia algo muito importante para Brasil e Portugal: o Acordo Cultural Luso-brasileiro. “Era um acordo que vinha dos tempos de Salazar, quando o fluxo migratório era de Portugal para o Brasil e não como agora, do Brasil para Portugal”, diz. Pelo acordo, previa-se que, no ponto relacionado à equivalência de diplomas, se, em um dos países, não existisse o título profissional do imigrante, deveria se seguir o que fosse mais próximo. “Como, em Portugal, não havia cirurgiões-dentistas e aqueles que chegavam do Brasil se apresentavam assim, entendia-se que o mais próximo disso eram os dentistas”, explica. E a diplomacia brasileira se apegava a esse ponto ao exigir o reconhecimento dos brasileiros.
Fontes de Carvalho destaca, contudo, que havia o entendimento, em Portugal, de que nem todas as universidades brasileiras formavam dentistas da mesma maneira. “A formação acadêmica era muito diferente dependendo da região, embora o título profissional fosse o mesmo. Havia universidades no Brasil, como as de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, e eu conheci dezenas delas, com currículos superiores ao português e ao europeu. Mas, também é verdade, havia instituições em que os cursos curriculares eram inferiores ao português e ao europeu. E muitos dos dentistas que estavam em Portugal vinham dessas faculdades”, enfatiza.
Em Portugal, nos poucos cursos de dentistas daquela época — a formação de profissionais se concentrava no Porto, em Lisboa e em Coimbra —, a carga era de 4,6 mil horas, distribuídas entre cinco e seis anos. “Essa era a primeira questão colocada pela União Europeia. Não podíamos reconhecer automaticamente o título profissional brasileiro, porque envolvia formação diferente. Além disso, o governo português estava obrigado a rever todos os acordos com países terceiros que fossem preferenciais ao tratado da União Europeia. E Portugal tinha um único acordo, com o Brasil”, detalha.
O jeito foi buscar um consenso com o Conselho Federal de Odontologia do Brasil. “Porém, quando estávamos na iminência de resolver os problemas, os governos intervinham, sobretudo, o brasileiro, e nada avançava”, conta. Foi numa reunião em Lisboa, já passados anos do início das negociações no governo de José Sarney (1985-1990), que Portugal entendeu o quanto a questão dos dentistas era importante para o Brasil. “Os negociadores brasileiros dificultavam a revisão do acordo cultural. E, só mais tarde, Portugal descobriu que estava lidando com um tratado muito maior. Não era só um acordo cultural, havia centenas de temas envolvidos.”
Ameaças e solução
Para Fontes de Carvalho, o período de maior embate entre Brasil e Portugal foi no governo Collor de Mello (1991-1992). Mas a possibilidade real de rompimento se deu no primeiro mandado de Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), com Cavaco Silva (1985 a 1995) à frente do governo de Portugal. O dentista afirma que, no Porto, para uma Cimeira Ibero-americana, Fernando Henrique o chamou para um encontro em particular. “Foi uma conversa muito simpática. Ele me agradeceu pelo que eu estava fazendo em prol das relações entre Brasil e Portugal”, complementa.
A conversa amigável com o então presidente do Brasil era um contraponto ao tormento vivido por Fontes de Carvalho no dia a dia. “Eu era apontado como o maior bandido de Portugal. Uma vez, no aeroporto em São Paulo, uma pessoa que morava em Portugal e estava na fila fazendo o check-in queria me bater. Em Manaus, em um hotel, um homem me insultou”, diz. Não só. “Passei a receber ameaças por telefone. Descobri, tempos depois, que o governo português colocou um policial em frente ao meu consultório. Certamente, o governo sabia o que estava acontecendo”, assinala.
O próprio presidente de Portugal, Jorge Sampaio (1996 a 2006), sentiu o peso da hostilidade provocada pela amplificação da crise com os dentistas brasileiros. Recém-empossado, em uma visita oficial ao Brasil, ele tinha um compromisso no Congresso Nacional. Lá, foi interpelado pelo então deputado Jovair Arantes, que era cirurgião-dentista. “Aquilo causou um desconforto muito grande no presidente português, que, antes de viajar, havia me pedido para preparar, com Jorge Simões, então assessor presidencial para a área da saúde, um dossiê sobre o assunto para que não fosse surpreendido em caso de questionamento. O presidente quase foi insultado”, lembra.
Para que, finalmente, Brasil e Portugal chegassem a um acordo envolvendo os dentistas, Fontes de Carvalho convenceu o governo da época a transferir, para a Assembleia da República, a responsabilidade da resolução do conflito. Era 1996. A partir dali até 1998, as arestas finalmente foram sendo aparadas. Brasil, com o ministro das Relações Exteriores, Luiz Felipe Lampreia, e Portugal, com o diplomata Synésio Sampaio Góes, chegaram a um tratado que foi considerado bom para os dois lados.
“Pelo que foi acertado, os dentistas que estavam em Portugal, e eram 800, não 2 mil, tiveram de fazer um curso de ética deontológica e legislação profissional. Esses profissionais, no entanto, não poderiam progredir na carreira, fazer mestrado ou doutorado. Também não podiam trabalhar em nenhum outro país da Europa. Só podiam exercer a profissão em Portugal”, ressalta. No caso dos dentistas que chegaram em Portugal depois do acordo, a equivalência passou a ser pelo diploma, por meio das universidades. Para trabalhar em Portugal, todos têm de fazer um curso prático de um ano.
Como consequência do fechamento do acordo com o Conselho Federal de Odontologia, cujas negociações perpassaram quatro governos do Brasil [Sarney, Collor, Itamar Franco (1992-1995) e Fernando Henrique], a Assembleia da República criou, por unanimidade, em 1998, a Ordem dos Médicos Dentistas de Portugal, a primeira depois da Revolução dos Cravos e a primeira por lei do Parlamento. Pelos dados da Ordem referentes a julho deste ano, há, em Portugal, 12.988 dentistas profissionais, dos quais 1.466 são estrangeiros, sendo 645 (5%) cidadãos brasileiros.