No Barreiro, um balcão para devorar toda a região
O Voraz abriu há menos de um ano e já deu muito que falar. A culpa é dos chefs Tiago Santos e Bruno Xavier, que insistem em fazer do Barreiro ponto de convergência para tudo o que há de bom na região.
Caiu que nem um meteorito. Numa cidade que não é, propriamente, o primeiro destino que vem à memória quando se pensa em matérias gastronómicas, dois chefs da Margem Sul, Tiago Santos e Bruno Xavier, decidiram ver o copo meio cheio: onde não existia qualquer restaurante de cozinha de autor, vislumbraram a oportunidade de começar algo com potencial transformador.
O Voraz não é só um restaurante – são quatro, na verdade. Quatro balcões no Mercado 1.º de Maio no centro do Barreiro, no meio do próprio mercado, entre bancas de fruta, de vegetais, de peixe. Afinal, o produto está no centro das atenções – e aqui não é mero chavão estafado de chef. Mais do que ser apenas restaurante, o Voraz envolve um projecto de território, em diálogo com produtores, clientes e a restante restauração.
Junto a uma das entradas do edifício está o balcão Rûto Izakaya, voltado para as cozinhas asiáticas, com a japonesa em destaque e o sushi ao centro. Com particularidades que mostram logo ao que vem o Voraz. “Salmão, não temos”, avisa logo Tiago Santos. “Mas de vez em quando posso ter truta salmonada.” E não é só uma questão de querer ter peixe português, vão mesmo ao detalhe de ter peixe local, do estuário do Tejo. Tiago mostra com orgulho uma tainha-liça, de fundo (não confundir com aquela que vê se aos magotes à superfície), “Vejam que beleza de lombo”.
Sob o chapéu da sustentabilidade, apostam em espécies invasoras, peixes vorazes como a corvinata, que nas águas salobras do Mar da Palha pode ultrapassar os 20 quilos, e o siluro, que é apanhado a montante e chega a ser maior do que um homem adulto. Pelas mãos do chef Douglas Prates, ganham a forma de maki, sashimi e nigiri, ao lado de sardinhas, carapaus e outras espécies da costa. O arroz, esse é da Lezíria. “O princípio foi pensar: o que faria um sushiman japonês que viesse viver para o Barreiro?”
Regra: “Aquilo que entendermos fazer”
O espírito não muda nos restantes balcões, agrupados no centro da nave do mercado. Um dedicado à pastelaria, onde são feitas as sobremesas, outro de bar, chamado Roastelier porque é ali feita a torrefacção do café, e o Raiz, que é o coração de todo o empreendimento. Aqui, a cozinha tem como regra não ter regra. “É aquilo que entendermos fazer”, resume Tiago.
Dentro das disponibilidades de estação, de produtores locais – a filosofia quilómetro-zero dita a prioridade –, mas sem cair no excesso de forçar aquilo que não existe. “Se tenho um produto melhor noutra região, não vou fazer ‘demagogia’”, admite Tiago, para apresentar o couvert, que junta azeite da Beira Baixa, manteiga açoriana e pão do Casal do Marco (Seixal).
Nessa regra de não haver regras cabem, por exemplo, uns choquinhos fritos pré-confeccionados a vácuo, capazes de deixar muitos setubalenses sem chão, mas também rissóis de lamejinha, um bivalve apanhado no estuário do Tejo (e depurado), com um copioso arroz de tomate ou de grelos, consoante a época. Ou umas vieiras (“japonesas, não vale a pena inventar, as nacionais não se lhes comparam”) servidas em molho wafu com cogumelos shiitake produzidos no concelho do Montijo e colhidos segundo especificações do chef. O prato, esse é daqueles que reconfortam em dias frios, e come-se à colher, para não perder nada.
Pratos vegetarianos, também os há, não como mera “opção” para contentar clientes com restrições alimentares, mas como pratos de pleno direito, pensados para saciar omnívoros sem reclamações de faltar ali alguma coisa.
O wellington de beterraba é um desses casos, feito com uma variedade de beterraba criada por um produtor do Pinhal Novo “em solo arejado”, que resulta numa polpa mais suave e carnuda, menos densa, com uma tonalidade e uma textura que causam surpresa à primeira garfada. Além do tubérculo-estrela, completam o quadro o queijo de cabra Ortodoxo, da Arrábida, um demi-glace de legumes, puré de batata trufado e caldo borgonhês de castelão.
Um mapa da região em formato carta de vinhos
Faltava falar dos vinhos. Ficaram para o final, pelo bom motivo de ser um dos pontos fortes – entre tantos outros – do Voraz. A carta é, provavelmente, a mais bem apetrechada de vinhos da região da Península de Setúbal. Nela estão listadas 64 referências, de 17 produtores, todas disponíveis a copo. Produtores pequenos, sublinhe-se, alguns pequeníssimos. “Tenho clientes que, ao ver a carta, dizem, ‘Mas não conheço nada disto!’”, conta Tiago. “Eu digo-lhes, ‘É essa a ideia, descobrir’.”
Entre tamanha escolha estão alguns vinhos feitos pelo chef, que é também formado em enologia, em parceria com produtores da região, como a Trois, com quem desencantou um castelão de maceração carbónica, de pouca extracção, um tinto aberto, suave, que parece feito para a tal beterraba.
E há também, como não?, vinhos do Barreiro. Isso mesmo, do Barreiro, produzidos em Palhais, a coisa de cinco quilómetros daqui, pela mão do decano da enologia Virgílio Loureiro. É difícil esquecer o branco de curtimenta, cem por cento fernão pires, que mostra o imenso caminho que ainda há a desbravar no mundo dos vinhos. Felizmente, há uma lista longa para descobrir a copo, ao balcão do Voraz.
Voraz
Mercado 1.º de Maio, Rua Eça de Queiroz, Barreiro
Tel.: 961838235
Web: instagram.com/vorazbarreiro
Das 12h30 às 15h e das 19h30 às 22h; sexta e sábado, até às 23h. Encerra domingo e segunda
Preço médio: 30 euros
Este artigo foi publicado no n.º 8 da revista Solo.