Yacht rock, o género musical criado a posteriori
Yacht Rock: A Dockumentary, de Garret Price, é um documentário HBO sobre a música suave dos anos 1970 e 80 feita por gente como Michael McDonald, Kenny Loggins, Christopher Cross e Steely Dan.
“De 1976 a 1984, as ondas de rádio foram dominadas por música genuinamente suave", assim começava, há quase 20 anos, cada episódio de Yacht Rock, uma série cómica online que teve o condão de dar o nome a um género musical a posteriori, mais de duas décadas após o seu final.
A série foi feita para o Channel 101, um evento de pilotos de televisão em que o público votava naqueles que eram para continuar para o mês seguinte. Um grupo de aspirantes a argumentistas de comédia juntou-se, nesse âmbito, para ficcionar histórias e ligações entre os discos que andavam a comprar baratíssimos em segunda mão, música proscrita, que vendeu toneladas na altura, mas nunca tinha tido grande respeito e aceitação crítica.
A coisa pegou. Os criadores do termo estabeleceram várias regras, como a influência da complexidade do jazz e do r&b e uma árvore genealógica que pode ser traçada através de vários músicos de sessão que tocaram com os Steely Dan, mas o nome que deram ao género acabou por lhes fugir da mão e é usado para classificar muita música que não caberia na designação idealizada por eles. Hoje há concertos, digressões, cruzeiros, chapéus de marinheiro vendidos, entre muitos outros, sem ter necessariamente o aval nem dos músicos originais, nem de quem cunhou o género.
A história do yacht rock, género musical, é contada num novo documentário da HBO/Max, Yacht Rock: A Dockumentary, de Garret Price, parte da série de documentários Music Box, com produção executiva de Bill Simmons. Estreia-se no sábado, e inclui gente que esteve realmente lá, como o omnipresente Michael McDonald, dono de um dos grandes vozeirões da era, bem como colaboradores seus, de Kenny Loggins a Christopher Cross, o autor de Sailing que revela ter financiado a sua primeira demo através de um muito bem-sucedido negócio de venda de erva.
Também por lá aparecem membros dos Toto, a grande banda de estúdio da era responsável por Africa, Rosanna ou Human Nature, de Michael Jackson, bem como fãs como Questlove, Mac DeMarco, Thundercat ou Prince Paul, o produtor que famosamente pegou em Peg, dos Steely Dan, para construir Eye Know com os De La Soul.
“Hollywood” Steve Huey é uma das cabeças falantes do documentário. Era também o anfitrião da série, sendo ele quem dizia a narração citada no início de cada episódio. Hoje montador assistente em reality shows de televisão, trabalhava, como crítico para a base de dados musical AllMusic e está, com JD Ryznar, um dos criadores e protagonistas da série, a escrever um livro sobre esta música.
Ao PÚBLICO, Huey explica que as figuras responsáveis pela música tinham alguma relutância, ao início, ao uso do termo, por terem sido tão gozadas. Afinal, o ano de 2005, no qual a série saiu, teve também Virgem aos 40 Anos, de Judd Apatow, que tinha um DVD de Michael McDonald como fonte de irritação para as personagens. Ou seja, esta música era vista como uma anedota. “Houve um concerto de Steely Dan algures em Los Angeles. Eles apareceram em palco a usar chapéus de marinheiro. No fim da primeira canção, tiraram os chapéus e pisaram-nos”, conta.
Donald Fagen, o único membro vivo da dupla, aparece no documentário ao telefone, não só a recusar falar do género, como a mandar o realizador para um certo sítio. É a reacção mais natural para alguém que é célebre por “odiar tudo”, como descreve Huey. Tirando os Steely Dan, “independentemente do que acham do termo, acho que muitos deles estão felizes por isto os ter ajudado a chegar a públicos mais novos”, refere.
Huey diz que ficou contente por “o documentário insistir no facto de que isto era música racialmente integrada". "Eram músicos brancos a impressionar músicos negros e os músicos negros queriam trabalhar com os brancos", elabora, já que "na comunidade de músicos de sessão, só importava tocar bem e ser versátil". É notável pela negativa, continua, que na "cultura americana (...) só se possa chegar a este nível de integração nos bastidores, quando o público não está a ver e não há departamentos de marketing envolvidos”.
Como recomendação para novatos no género, Huey dá uma dica: Nothin' you can do about it, dos Airplay. “Era uma banda de estúdio de David Foster e Jay Graydon, muitos dos Toto tocaram com eles. É uma regravação de uma canção que escreveram para o grupo vocal The Manhattan Transfer. Esta versão é mais yacht, tem todos os truques que se possa imaginar. É uma canção perfeita de yacht rock”, comenta. Quanto a álbuns, “voltamos sempre a The Dude", do recém-falecido Quincy Jones. "É o mundo do r&b a adoptar o som do yacht rock e a adaptá-lo para um público negro, com muitos dos mesmos músicos."