Já há cem denúncias de assédio sexual na música, ensino e indústrias criativas

No Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, o Instituto de Etnomusicologia apoia denunciantes e pede mais e melhores canais de denúncia. Queixas informais chegam à centena.

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O meio do jazz tem sido o mais visado pelo facto de o pianista João Pedro Coelho, acusado de violação, ser do sector Rui Oliveira
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O número de denunciantes reunidos pelo canal criado após a denúncia da DJ Liliana Cunha de violação alegadamente cometida pelo pianista João Pedro Coelho ascende já a uma centena e alargou-se às áreas do ensino, teatro e literatura, visando mais de 20 pessoas do sector musical em particular. Esta segunda-feira assinala-se o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres e o Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança (INET-md) declarou “a sua solidariedade” com as dezenas de pessoas das indústrias criativas que têm denunciado “situações de abuso de poder, de violência e de assédio sexual”.

A vaga de denúncias que nasceu online após a queixa de violação da DJ Liliana Cunha contra João Pedro Coelho continua a visar sobretudo o pianista de jazz, que nega as acusações de que é alvo, e mantém-se algo focada no sector desse género musical. Porém, se os testemunhos recolhidos por email já incluíam nomes da música clássica ou de áreas como o audiovisual, alcançam agora também instituições de ensino, privadas, o teatro e a literatura, sabe o PÚBLICO.

Através do email testemunhasdamusica@proton.me e de um grupo fechado na rede social Telegram, começaram a ser recolhidas, e filtradas, queixas contra vários nomes. Em paralelo e poucos dias depois, como noticiou na semana passada o jornal online Observador, nasceu também o denunciasteatro@gmail.com, onde, de acordo com a mesma publicação, foram identificadas seis denúncias, quatro das quais contra a mesma pessoa e uma delas correspondente a uma queixa policial com anos.

Estes são espaços de denúncia informais que nasceram em poucos dias e que espelham a necessidade de canais de queixa formais segundo as boas práticas internacionais: que seja possível o anonimato, nem que numa primeira fase, e que sejam espaços independentes das instituições ou pessoas acusadas. Esta segunda-feira, o INET-md frisa precisamente a necessidade urgente de criação de “medidas concretas para sustentar uma mudança significativa” nas instituições de ensino e de investigação, nomeadamente as formas de denúncia.

“Conforme apontado por diversos relatórios e publicações científicas, a violência e o assédio sexual configuram-se como problemas endémicos em vários contextos musicais, sendo frequentemente descritos como generalizados, sistémicos e normalizados”, lê-se num comunicado do instituto da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. “A combinação de misoginia e sexismo históricos, ausência de regulamentação, relações informais e de co-dependência, além da precariedade laboral, contribuem para a perpetuação da desigualdade de género e da violência sexual neste sector”, atestam.

Quebrar a cultura do silêncio

O INET-md, que tem uma nova linha temática de investigação dedicada a Estudos de Mulheres, Género e Sexualidade, junta assim a sua voz à de entidades como a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) ou a Plateia – Associação de Profissionais das Artes Cénicas. Esta última manifestou a sua preocupação quanto à sub-representação de sistemas de denúncia no meio artístico e a APAV apelou a que sejam levadas a sério as denúncias de casos de assédio e crimes sexuais no meio artístico.

As medidas concretas a que se refere o INET-md passam precisamente pela capacidade, no caso das instituições de ensino e investigação, de criarem espaços seguros, no geral, e de recepção ou auscultação de testemunhos ou sinais de alerta.

“Urge quebrar a cultura do silêncio e garantir que todas as pessoas que se sintam vítimas de assédio, e outras formas de abuso, saibam que a sua voz será ouvida e que são interlocutoras válidas na construção de outras formas de educar, criar, estudar e fazer investigação”, declara o INET-md em comunicado, sem deixar de salvaguardar “a presunção de inocência como pedra basilar do Estado de direito”. Mas reconhece que “o desenvolvimento do quadro jurídico sobre estas matérias enfrenta vários limites, entre os quais aqueles impostos por uma cultura de impunidade, a coberto de um certo pacto de silêncio” de quem testemunha e dos riscos de “estigmatização e represálias” para as denunciantes, “como se vê pela proliferação recente de processos por difamação na sequência de denúncias de abuso e assédio sexual”.

Na sequência da queixa de Liliana Cunha à PSP e ao Ministério Público, lançando na ordem do dia o esclarecimento sobre a prática do “stealthing” (sexo sem preservativo sem o conhecimento nem o consentimento do/a parceiro/a), uma petição pública e um projecto-lei, não só surgiu um reticulado de queixas sobre professores e/ou músicos com ascendente sobre alegadas vítimas, como uma reacção de esclarecimento de instituições de ensino sobre os seus códigos de conduta.

A maior parte daqueles praticados nas instituições de ensino contactadas pelo PÚBLICO data de 2022 ou 2023, o que espelha as dificuldades jurídicas de actualização quanto a estes temas. Aliás, o regime geral de protecção de denunciantes de infracções, que transpõe para a lei portuguesa a directiva europeia de 2019 que pretende salvaguardar as pessoas que denunciam violações no espaço comunitário, data apenas de 2021.

“É necessário que haja espaço para que as pessoas sobreviventes de todas as formas de violência sexual possam reagir e denunciar, sem medo de serem acusadas de difamação ou serem alvo de represálias. E sem que, para tanto, sejam forçadas a um escrutínio e a uma exposição pública, que tantas vezes as desacredita e reitera a violência original”, lê-se ainda na posição do INET-md.

Esta segunda-feira assinalam-se os 25 anos do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres e, segundo o Gabinete de Estatísticas da União Europeia (Eurostat), uma em cada cinco mulheres residentes em Portugal diz já ter experienciado alguma violência física e/ou ameaça e/ou violência sexual. A APAV apoiou em 2023 12.398 mulheres, mais 8,7% do que em 2022. A maior parte dos pedidos de ajuda está relacionado com a violência doméstica.

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