As muitas cores do meu Algarve
“O barulho das ondas a bater na areia clara e fina, o riso das crianças e a voz dos adultos, no meio do areal, fazem-me ser grata por ainda ter memória”, escreve a leitora Rita Sá Alves.
Lembro-me das manhãs frescas do Verão abrasador do Algarve e das cestas de figos carnudos, de alfarrobas cheirosas e amêndoas ainda com o veludo por fora, por cima da mesa de madeira escura, enfeitada com o napperon de renda branca, no meio da sala da casa com vista para o mar azul, lá longe.
A avó e as vizinhas, rindo e chorando, tiravam das vagens as ervilhas cor de alface fresca e as favas de pele macia. Tinha sido uma manhã rica em afazeres, desde muito cedo, ainda o sol se levantava no horizonte, lá para os campos longínquos, forrados a verdura, com pequenas florzinhas amarelas e lilases e árvores de frutos e folhas. O nevoeiro matinal dava ao campo um toque de mistério e de frescura no ar.
O acontecimento da apanha dos figos, das alfarrobas e das amoras vermelho escuro deixou em todas nós uma linda lembrança para sempre. Tudo era riso, tudo era cantares, tudo era luz. Era tudo uma alegria!
Antes do almoço, chegava o avô, com peixes pescados no escuro da madrugada, no mar baixo e no mar alto. Por vezes a barra deixava os barcos coloridos passar e os pescadores ajoelhavam-se, agradecendo e chorando.
A avó e as vizinhas arranjavam os peixes, escamando e estripando, colocando-os no tacho velho e limpo com os legumes por baixo, para a caldeirada, que nos saciava o estômago e a alma. De tarde, quando os homens descansavam para uma próxima faina, as mulheres preparavam o isco para a pesca, sentadas no primeiro degrau das escadas de pedra do quintal. Era uma entreajuda cheia de humildade, amor e amizade.
Recordo-me também, por vezes, da casinha de madeira na praia, que servia petiscos, como o polvo seco e a moreia frita, as conquilhas e os caranguejos, e de, sentada com os meus pais, olhar o mar azul e verde a piscar, por causa do sol radiante a projectar os seus raios nele. O barulho das ondas a bater na areia clara e fina, o riso das crianças e a voz dos adultos, no meio do areal, fazem-me ser grata por ainda ter memória.
O meu Algarve já foi o beijar do pé do Menino Jesus, com a igreja cheia, numa noite fria, onde eu muito pequenina me comovi.
E lá ia eu, com a avó e as vizinhas, o avô e os outros pescadores, de xaile preto na cabeça até às costas, com cheiro a maresia no ar, para casa, ouvir as lendas de encantar, à luz do candeeiro a petróleo.
O Algarve já foi azul nublado, bege cor de areia, gaivotas a voar por cima das chaminés rendilhadas. Os campos com as figueiras baixas e gentis a contrastar com os cardos nas dunas, altas e perfeitas. Era assim.
Ainda hoje, na cama de ferro com bolas douradas do quarto dos meus avós, espreito para o postigo da porta de entrada no início do corredor, que de madrugada já está com luz, e sinto-me igual a outrora, quando adormecia de novo com o som da espuma
do mar a bater no chão da praia e com esperança que o avô voltasse das águas.
Rita Sá Alves