No Porto/Post/Doc, o jazz é a banda sonora da História
Um documentário extraordinário: Soundtrack to a Coup d’État mostra o jazz como música ao mesmo tempo revolucionária e conservadora, com a independência do “Congo belga” em pano de fundo.
Abbey Lincoln, Melba Liston, Miriam Makeba, Nina Simone, Art Blakey, Charles Mingus, Dizzy Gillespie, Eric Dolphy, Louis Armstrong, Max Roach, Ornette Coleman, Thelonious Monk no centro de um filme que fala da promessa e da decepção das independências coloniais africanas? Faz todo o sentido quando vemos Armstrong a dizer a uma câmara de televisão que não vai levar o jazz à União Soviética enquanto o governo americano "não resolver aquelas confusões lá em baixo no Sul" — e todos sabemos que está a falar da segregação racial que estava a incendiar as tensões sociais nos Estados Unidos dos anos 1960. Isto enquanto vemos Abbey Lincoln e Max Roach a interpretar excertos de We Insist! Freedom Now Suite, o álbum que o baterista publicou em 1960, inspirado pelos movimentos pelos direitos civis.
O jazz foi também, foi sempre, uma forma de expressão revolucionária, sobretudo nos anos conturbados que o belga Johan Grimonprez resgata ao esquecimento em Soundtrack to a Coup d’État. O filme é um dos pontos altos da programação 2024 do Porto/Post/Doc (Competição Transmission, sessões no Passos Manuel este domingo, às 21h30, e no Batalha na próxima quarta-feira, às 21h15) — uma alucinante colagem/montagem audiovisual político-sócio-musical organizada quase como um thriller de época em versão não-ficção, quase inteiramente composta de material de arquivo.
Quem conhece a Black Power Mixtape 1967-1975, de Göran Olsson, terá uma ideia da estética de arquivo que norteia o trabalho de Grimonprez — relatar a História a partir de imagens que foram registadas na sua época, entretanto esquecidas ou que nunca viajaram muito. Mas Soundtrack to a Coup d’État estica essa estética a um limite quase inultrapassável, ao articular imagens e sons "musicais" com imagens e sons "políticos" de época e com leituras e entrevistas feitas nos nossos dias.
De facto, o impulso central de Grimonprez é a independência do (até então) Congo belga em 1960 e a morte de Patrice Lumumba (1925-1961), primeiro primeiro-ministro do país entre Junho e Setembro de 1960, assassinado em Janeiro de 1961 pelas autoridades do estado separatista do Katanga. E, mais latamente, o modo como o "movimento dos não-alinhados" que surgiu a partir dos 16 países recém-independentes que deram entrada nas Nações Unidas em 1959 e a subsequente utopia dos "Estados Unidos da África" foram esmagados pelas potências coloniais, pouco dispostas a abrir mão das matérias-primas essenciais à economia imperialista (ou não fosse o Congo belga importante fonte de urânio para a energia nuclear).
Na narração urgente e viva do artista pluridisciplinar belga, a crise do Congo belga torna-se num sintoma da tensão sociopolítica entre impérios em queda e independências em ascensão, num prolongamento da Guerra Fria por outros meios. Com o comunismo a ser acenado como "bicho papão" do consumismo (pormenor de deliciosa ironia: Patrice Lumumba foi durante largos anos caixeiro-viajante de uma cervejeira…).
O jazz, free ou não, foi então a banda sonora daqueles que se sentiam cidadãos de segunda classe no seu próprio país e que trilhavam caminhos de uma liberdade que apenas lhe era permitida artisticamente (e mesmo assim, com constrangimentos) — ao mesmo tempo que era aproveitado pelas autoridades americanas como "manobra de distracção" cultural junto dos países africanos financiada pela CIA. A tal "banda sonora para um golpe de estado" mencionada no título do filme, que atinge o ponto de colisão no dia de Fevereiro de 1961, quando o casal formado por Abbey Lincoln e Max Roach e dezenas de outros manifestantes invadem o Conselho de Segurança das Nações Unidas, em Nova Iorque, para protestar contra o assassinato de Lumumba. Mas também a banda sonora da esperança num futuro melhor de igualdade e justiça.
A importância de Soundtrack to a Coup d’État não se fica pela maneira como articula elementos históricos tão aparentemente díspares numa única narrativa multifacetada. Ela reside em grande parte no modo virtuoso, paciente, como Johan Grimonprez e o seu montador Rik Chaubet moldam a própria forma do filme — imagens de arquivo de proveniências muito diferentes, recortes de jornais, home movies, grafismos retro, vozes off, citações textuais no ecrã, "notas de rodapé", todo o tipo de matérias-primas audiovisuais são amalgamadas com inteligência, humor e estilo, sem nunca perder de vista a legibilidade e a acessibilidade das ideias e propostas que são feitas.
É verdade que Soundtrack to a Coup d’État é um filme político, até porque a sua história de 1960-1961 continua a ressoar desconfortavelmente neste nosso 2024 à mercê do capitalismo selvagem — e mais desconfortavelmente ainda no 2024 da República Democrática do Congo. Mas é também um filme sobre o modo como a música foi, é e continua a ser a banda sonora das nossas vidas. E é, tout court, um grande filme.