O que é o stealthing? A lei condena quem o faz? Como provar?
Juristas divergem quanto ao enquadramento na lei da violação da remoção não consensual do preservativo. Vai ser discutida uma petição pública sobre tipificar forma de abuso sexual no Código Penal.
A recente onda de relatos de assédio sexual no meio artístico português teve início com a denúncia de alegada violação feita pela DJ Liliana Cunha contra o pianista João Pedro Coelho. Esta acusa-o de stealthing, ou seja, de ter removido o preservativo durante a relação sexual sem o seu consentimento.
Foi entretanto lançada uma petição pública que exige uma “revisão do Código Penal para incluir o stealthing como crime sexual”, assim como a inclusão de uma “definição clara e abrangente de consentimento” na lei.
A petição já reuniu as 7500 assinaturas necessárias para ser levada à Assembleia da República. No dia 20 de Novembro, o PAN entregou no Parlamento um projecto-lei para que o stealthing seja considerado crime.
O que é o stealthing?
O stealthing consiste na remoção ou não utilização do preservativo durante a relação sexual, sem o conhecimento ou consentimento da outra pessoa. O conceito pode também incluir o acto de danificar propositadamente o preservativo. A palavra não tem tradução directa em português, mas tem por base a palavra inglesa stealth, que se refere a uma forma de agir furtiva ou secreta.
Um estudo realizado em 2014 dá conta da utilização deste termo na comunidade gay para descrever o acto em que uma pessoa infectada com VIH deliberadamente infecta outra com o vírus, também sem o seu consentimento ou conhecimento. O mesmo estudo reconhece várias formas de o fazer, sendo uma delas precisamente a remoção ou não utilização do preservativo durante o acto sexual.
Que consequências pode ter?
Tal como qualquer acto sexual desprotegido, o stealthing pode ter consequências a nível físico, como “o risco de transmissão de infecções sexualmente transmissíveis (IST) e o risco de uma gravidez”, explica Rita Maciel Barbosa, médica no Centro Integrado de Saúde Sexual do Porto. “Por outro lado, enquanto acto que não respeita a autodeterminação e a vontade da outra pessoa, terá implicações importantes do ponto de vista da saúde mental, como uma situação de abuso”, acrescenta.
A médica confirma que, apesar do “importante” destaque que o assunto tem vindo a ganhar na discussão pública recentemente, “este não é um fenómeno novo”, já tendo lidado com casos de vítimas de stealthing.
Um estudo de 2023, que analisou dados de todo o mundo, reportou taxas de incidência de stealthing entre 8% e 43% em mulheres e entre 5% e 19% em homens que têm relações sexuais com homens.
O stealthing é crime? Pode ser considerado violação?
Este é um dos pontos-chave da discussão. Os especialistas dividem-se em relação ao assunto: se, por um lado, existem juristas que entendem que o crime de violação já contempla o stealthing, reconhecendo apenas a necessidade de clarificar a lei quanto a esta prática, há também quem, por outro lado, defenda que é importante realizar uma actualização geral à lei da violação no Código Penal.
O artigo 164.º do Código Penal português considera que incorre no crime de violação quem “constranger” outra pessoa a sofrer ou praticar actos sexuais. A lei entende como “constrangimento” qualquer meio, não só físico, empregue para a prática dos actos “contra a vontade cognoscível da vítima”.
Elisabete Ferreira é professora na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Porto e orientou uma tese de mestrado acerca do tema em 2022. Na sua óptica, apesar de reconhecer que “à primeira vista, não pareça haver constrangimento”, o stealthing tem por base um consentimento “viciado”. Para a jurista, “a pessoa ter dado o seu consentimento para a relação sexual com o pressuposto do uso do preservativo” e este ser retirado sem o seu conhecimento pode ser entendido como uma forma de constrangimento.
“Quem tira o preservativo está a actuar, sem dúvida nenhuma, contra a vontade cognoscível da vítima, a partir do momento em que a vítima fez questão de que se usasse o preservativo. Desta forma, parece-me que a lei, tal como está, já permitiria uma condenação nestes termos”, defende.
No entanto, a docente acrescenta que “muitas vezes, o problema não é tanto jurídico, mas prático”: mesmo que a lei já preveja estas situações, muitas vezes há um problema de “interpretação”, que pode gerar um desalinhamento entre a lei e aquilo que acontece nos tribunais.
“Temos uma lei que pode gerar interpretações diferentes consoante os juízes” e, por isso, Elisabete Ferreira reconhece utilidade em clarificar a lei, de forma a, tal como exige a petição, incluir o stealthing de forma específica.
A jurista chama ainda a atenção para o “preconceito” que ainda existe relativamente à violência sexual, admitindo que consegue imaginar que um juiz “mais tradicionalista” não entenda que o stealthing integre o crime de violação.
“É importante não só alterar a lei, mas também sensibilizar quem lida com a lei, em particular os juízes, para questões psíquicas, sociológicas, psicológicas, de forma a compreender a mente da vítimas”, conclui.
Já Mariana Vilas Boas, doutorada em Direito e membro da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, defende que, “neste momento, de acordo com a definição que temos de violação e de coacção sexual, muito dificilmente esta conduta pode ser enquadrada” nesses crimes, já que têm por base o conceito de “constrangimento” e não o de “consentimento”. “No fundo, não se está a constranger, está-se a enganar”, acrescenta, salientando que “estas situações de engano não estão cobertas pela nossa lei”.
“A lei portuguesa não está a cumprir com o que é previsto pela Convenção de Istambul, nomeadamente o seu artigo 36.º, que nos diz que crimes sexuais, como a violação, são a prática de determinados actos sexuais sem o consentimento da vítima — consentimento que deve ser dado voluntariamente, por vontade livre da pessoa, e avaliado no contexto das circunstâncias envolventes”, explica.
A jurista acredita que, caso o Código Penal fizesse depender os crimes sexuais do consentimento da vítima, “o stealthing poderia estar coberto pela lei, porque, quando a vítima dá o consentimento, esse consentimento é para determinados actos”. Nesta perspectiva, exemplifica, uma pessoa pode ter dado o seu consentimento para o acto sexual com o preservativo, mas, a partir do momento em que este é retirado, o acto passa a ser exercido sem o seu consentimento.
“Ao invés de criar um tipo legal de crime novo, que falasse sobre essa conduta, o que importaria era alterar a lei penal”, para que esta passasse a estar de acordo com a Convenção de Istambul, defende Mariana Vilas Boas.
O stealthing já foi criminalizado em outros países?
As juristas não têm conhecimento que exista jurisprudência sobre stealthing em Portugal, o que significa que não existem exemplos reais de como pode ser enquadrado na lei. Existem, no entanto, casos internacionais de condenações pela prática em questão.
Segundo a mesma tese de mestrado de 2022, da autoria de Ana Rita Fernandes, a primeira condenação por stealthing ocorreu em 2017, na Suíça. Depois de “a vítima ter referido que a utilização de preservativo era indispensável para que a relação ocorresse”, o arguido retirou-o sem o seu conhecimento e penetrou-a vaginalmente, explica o artigo académico. A vítima só se terá apercebido de que este já não usava preservativo após ter ejaculado dentro dela.
O tribunal considerou o arguido culpado, segundo o artigo 191.º do Código Penal Suíço, que determina que incorre em crime quem se “aproveitar da incapacidade de discernimento ou de resistência de uma pessoa para a levar a praticar um acto sexual, acto análogo ou outro acto de natureza sexual”. O arguido foi condenado a um ano de prisão com pena suspensa e ao pagamento de uma indemnização à vítima.
Desde então, seguiram-se condenações pela prática de stealthing noutros países, nomeadamente na Alemanha, Nova Zelândia, Países Baixos ou Inglaterra.
No EUA, os estados da Califórnia e de Washington aprovaram legislação federal que “sanciona civilmente esta conduta, permitindo que as vítimas possam ser indemnizadas pelos danos provocados”, explica o trabalho de Ana Rita Fernandes, clarificando que não se trata de uma criminalização da agressão.
Na Austrália, alguns territórios também criminalizam o stealthing de forma explícita na sua legislação estatal.
O que fazer, caso seja vítima de stealthing?
A médica Rita Maciel Barbosa recomenda que alguém que seja vítima de stealthing procure ajuda e apoio, “à semelhança de outras situações de abuso sexual”.
A vítima deverá realizar uma avaliação quanto ao risco de infecções sexualmente transmissíveis, poderá aceder à contracepção de emergência, caso não utilize nenhum outro método contraceptivo além do preservativo, e poderá ainda equacionar-se o início da Profilaxia Pós-Exposição (uma medida de emergência para prevenir a infecção por VIH após uma possível exposição ao vírus), explica.
A profissional de saúde destaca também a relevância do apoio psicológico profissionalizado e acompanhamento médico integrado, acrescentando que, “à semelhança de outras situações de abuso a vítima deverá também denunciar [a situação] às entidades competentes”.