Cientistas portugueses descobrem novos ácaros aquáticos: parecem uvas brancas e rosas
Equipa da Universidade do Porto encontrou duas novas espécies de ácaros aquáticos em ribeiros da serra da Estrela. Estes animais não causam alergias e são úteis na monitorização da saúde dos rios.
Duas novas espécies de ácaros aquáticos foram descobertas em Portugal por cientistas da Universidade do Porto em parceria com colegas internacionais. Os “novos” ácaros – pertencentes a uma família que não causa alergias aos humanos – chamam-se Torrenticola soniae e Torrenticola elisabethae em homenagem a duas co-autoras da descoberta: as investigadoras Sónia Ferreira e Elisabeth Stur.
A T. soniae é redondinha, tem uma coloração amarelada e faz lembrar uma uva branca com dois caroços no lugar dos olhos. Já a T. elisabethae, a outra espécie descrita num artigo recente da revista científica ZooKeys, parece-se mais com uma uva rosa. As duas foram encontradas em amostras colhidas maioritariamente em ribeiros da serra da Estrela, na Guarda.
Os ácaros aquáticos (ou Hydrachnidia) são considerados bons indicadores de saúde ambiental – podem funcionar como espécies sentinela para indicar alterações na qualidade da água, por exemplo. Isto, porque estes pequeninos seres vivos têm o ciclo de vida muito associado a reservatórios naturais de água doce, actuando como agentes reguladores desses ecossistemas. Dependendo da sua fase da vida podem desempenhar o papel de predadores ou parasitas, não permitindo que populações de outras espécies assumam números muito elevados.
“Estamos a abrir a primeira página para usar esse conhecimento como ferramentas reais de monitorização dos cursos de água em Portugal. O Vlad [Vladimir Pešić], primeiro autor do estudo, tem trabalhos que avaliam como os ácaros se relacionam com os microplásticos, por exemplo”, explica ao PÚBLICO Sónia Ferreira, investigadora do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio) da Universidade do Porto.
Sónia Ferreira explica que Vladimir Pešić, do Departamento de Biologia da Universidade de Montenegro, domina a taxonomia dos ácaros aquáticos. Esta disciplina biológica classifica e agrupa organismos com base nas suas características comuns, atribuindo-lhes nomes. No caso das duas novas espécies identificadas na serra da Estrela, o taxonomista entendeu que deveria prestar um tributo a duas das co-autoras.
“Esta espécie é dedicada a Sónia Ferreira (Cibio, Portugal) pela recolha de numerosos exemplares utilizados neste estudo e pelo seu apoio entusiástico no estudo dos ácaros aquáticos portugueses”, lê-se no artigo científico.
Quando Sónia Ferreira recebeu a notícia da homenagem, ficou “muito surpresa”. “O Vlad achou que deveria nomeá-las assim pelo esforço e pela dedicação que [eu e a Elisabeth Stur] colocámos neste grupo. Desde então, já fomos à Madeira, aos Açores e já submetemos um outro artigo com mais espécies novas para a ciência. Este artigo [publicado na ZooKeys] é, contudo, o primeiro com novidades para a fauna de Portugal e do mundo”, refere a cientista do Cibio.
O estudo publicado na revista ZooKeys divulga os primeiros resultados da análise de ácaros aquáticos recolhidos em território nacional. Foram identificadas 65 espécies, das quais 36 são novas para a fauna desses organismos em Portugal. Duas delas eram também uma completa novidade para os entomólogos – ou seja, ainda não tinham sido descritas nem “baptizadas” com um nome científico.
A T. soniae é a segunda espécie descrita com o nome de Sónia Ferreira, sendo a primeira, a traça Chrysoclista soniae, também oriunda da região da serra da Estrela. “Isto tem um significado especial, porque foi lá que comecei a trabalhar em entomologia. É um sítio a que eu não voltava para trabalhar há muito tempo. Para mim, é uma cereja no bolo”, comenta a investigadora numa videochamada.
O trabalho de investigação da equipa internacional, que se enquadra no projecto europeu Genómica da Biodiversidade da Europa (Biodiversity Genomics Europe, ou BGE, na sigla em inglês) decorreu não só na serra da Estrela, mas também em Mértola, no Alentejo. No artigo recém-publicado participaram ainda os seguintes cientistas do Cibio: Laura Benitez-Bosco, Ana Cruz Oliveira, Dinis Girão, Adriana Padilha e Paolo Turaccio.
Sónia Ferreira explica que uma das mais-valias do grupo foi a complementaridade das áreas de especialidade de cada um. A co-autora Elisabeth Stur, da Universidade Norueguesa de Ciência e Tecnologia, “trouxe a experiência no trabalho de campo: onde procurar, como documentar e como fazer o registo”. Depois, os exemplares de ácaros recolhidos foram para a Universidade de Florença, em Itália, onde outros co-autores realizaram a sequenciação genética. Por fim, seguiram para o Montenegro, onde Vladimir fez a descrição taxonómica a partir de fotografias digitais.
“Há poucas pessoas a fazer actualmente o trabalho de taxonomia. O facto de o Vlad estar na equipa e participar activamente no projecto BGE permite-nos executar este trabalho e ter acesso a formação sobre este grupo [de aracnídeos]”, observa a cientista portuguesa.
Como encontrar ácaros aquáticos?
Os ácaros aquáticos são parentes afastados de aranhas e escorpiões (todos pertencem ao grupo dos aracnídeos, uma subclasse do filo dos artrópodes). Podem ser vistos a olho nu, mas são mesmo pequeninos, do tamanho da cabeça de um alfinete.
Para conseguir encontrá-los nos rios, os investigadores têm de filtrar muito bem a água e, depois, usar uma rede finíssima para peneirar os animais. Em seguida, os ácaros são separados das areias e de resíduos de vegetação para serem guardados em tubinhos.
“O que nós fazemos é estar a olhar para um tabuleiro, depois filtrar água muitas vezes. Temos mesmo de filtrar o sedimento com redes muito, muito, muito fininhas. Os ácaros ficam ali retidos. Colocamo-los então num tabuleiro branco com água, eles começam a nadar e nós detectamos essas “bolinhas”. Eles são visíveis. Precisamos é de filtrar muitos litros de água para encontrá-los”, diz Sónia Ferreira.
Este projecto da Genómica da Biodiversidade da Europa chega ao fim em Março de 2025, mas a ideia é que este o trabalho feito até aqui sirva de alicerce para a criação de uma rede europeia dedicada aos ácaros aquáticos.
“Vemos este projecto como um ponto de partida e não de chegada”, frisa a cientista do Cibio. Sónia Ferreira não tem dúvidas de que uma melhor compreensão deste grupo de seres vivos, que “até agora não estava a ser estudado atentamente em Portugal”, pode abrir caminho para se identificar espécies-sentinela.
Animais-sentinelas são espécies a que os cientistas recorrem para determinar, de uma forma mensurável, riscos ou ameaças ecológicas. Servem, portanto, como bioindicadores dos perigos ou ameaças ambientais.
“Ainda não temos sentinelas identificadas em Portugal, mas estas duas novas espécies poderão no futuro ser boas sentinelas para rios de montanha. Queremos poder muito rapidamente começar a trabalhar nessas características ecológicas”, espera Sónica Ferreira.