Um Pouco Mais de Azul: a palavra da semana é “número”
O que fazem um jornalista, um economista e uma poeta, neste episódio do podcast Um Pouco mais de Azul?
Fernando Alves conta as inúmeras razões para termos escolhido a palavra “número”, e talvez conferir as contas do Orçamento. Francisco Louçã fala das escolhas de circo, do número do INEM e de outras numerologias. Rita Taborda Duarte multiplica imagens por poemas e palavras em torno de dois livros, Metamorfoses, de Jorge de Sena, e Onde Vais, por Esse Trilho, com o Canto da Toutinegra?, de Duarte Belo e Fernando Alves.
O podcast Um Pouco Mais de Azul é um podcast independente da rede PÚBLICO. Está disponível às quintas-feiras, quinzenalmente, em todas as aplicações para escuta de podcasts — como a Apple Podcasts ou o Spotify — e na área de podcasts do site do PÚBLICO.
Em baixo pode ler excertos do episódio desta semana.
11 é menos do que é 1?
Francisco Louçã
Está a ser investigado se foram causadas 11 mortes por alegada negligência do INEM, ou insuficiência de meios. O caso adensa-se com a confusão que é a gestão do serviço e do ministério. Em Julho foi nomeado um novo director, que ao fim de uma semana renunciou ao cargo; seria interessante saber o que o levou a decisão tão desprestigiante e perceber se o que o atemorizou demonstrava a insuficiência ou desadequação dos recursos do INEM. Foi então nomeado interinamente o actual director, que se mantém estoicamente no cargo e que não se deu conta do pré-aviso de greve, ou, pior, não soube como reagir (mas vai candidatar-se ao concurso aberto cinco meses depois da demissão do titular, assim o certifica o Governo). Que o caso é grave não há dúvida, pois tanto que assim é que a ministra desautorizou a sua secretária de Estado e retirou-lhe a tutela sobre a instituição.
Num número político decerto estudado, para isso foi contratado um consultor de comunicação que deve ter apresentado a ideia, a ministra anunciou a autoridade do seu número: “Vou dedicar 70% do meu tempo ao INEM.” A coisa é estranha, a bem dizer. Que o caso tem de ser resolvido nem há dúvida; que os outros assuntos deste ministério à deriva só ocupem os escassos 30% sobrantes demonstra que a ministra ou não faz ou não sabe fazer e em todo o caso não conhece. Temos portanto uma agravante do imbróglio mortífero, uma ministra que agrava o problema de cada vez que sobre ele se pronuncia, e que continua sem oferecer soluções.
Resta o número mais importante. Onze vale menos do que uma: quando houve uma morte em circunstâncias dificilmente comparáveis, a direita exigiu a demissão de Marta Temido e esta saiu. Agora que houve 11, resta concluir que é menos do que uma, logo se vê, é preciso estudar ponderadamente o assunto, o inquérito logo dirá alguma coisa, entretanto há jogo de futebol e que ganhe o melhor.
Deitar contas aos livros Metamorfoses, de Jorge de Sena, e Onde Vais por Esse Trilho, com o Canto da Toutinegra, de Duarte Belo e Fernando Alves
Rita Taborda Duarte
Deitando contas à vida, “número” é a palavra rastilho do podcast de hoje. Faço cálculos por alto e de cabeça e encolho os ombros às matemáticas. A palavra “número” não deixa de ser uma palavra… Dois livros, para daí subtrair umas quantas conclusões acerca da gravidade das palavras face ao peso-pesado dos números. O primeiro: Metamorfoses, de Jorge de Sena, cuja reedição saiu por estes dias, pela editora Assírio & Alvim, com prefácio de Ricardo Marques. Ali, se multiplicam palavras por obras de arte: o produto são estes poemas que devolvem a largueza da humanidade a um mundo acanhado. O segundo livro que lembro, também ele dialogante, chama-se Onde Vais por Esse Trilho, com o Canto da Toutinegra. Trata-se de um passeio, em forma de livro, editado pelo projecto editorial do Museu da Paisagem, onde as palavras de Fernando Alves vagueiam por entre as fotografias de Duarte Belo, que, de máquina fotográfica em punho, tem palmilhado o nosso país de chão e pedra. A 159 fotografias com raízes presas ao chão Fernando Alves emprestou um movimento de asas e concedeu-lhes a música das palavras, a leveza do voo, o canto dos pássaros, da toutinegra por exemplo.
Entre o número e a palavra pensamos, muitas vezes, haver um discêndio contraditório. Mas se no princípio era verbo, note-se que também do verbo nasceram os números. E, hoje, as palavras não nos chegam para dizer todos os números a açambarcar. Os 314 biliões de Elon Musk, a aumentarem desde a eleição de Trump, têm, de facto, a exactidão de um número ou serão só metáfora de um assombro sórdido, de mau gosto? E quantos são os 43.846 mortos em Gaza, num só ano? Estes números precisos, higienicamente concretos, ocultam o nome de cada pessoa assassinada; e escondem a exacta palavra da vergonha, da impotência, da ferocidade selvagem. E os milhares de mortes em 1000 dias da guerra da Ucrânia? Há palavras, sim, mais rigorosas e precisas do que os números inteiros. São as palavras que se vergam, atropelando-se, para nomear com precisão e justiça o automatismo indiferente dos números.
Volto, por isso, a outras contas, acreditando que são as palavras quem melhor sabe contar. Metamorfoses será, por muitas razões, um dos livros mais importantes de Jorge de Sena. É o seu primeiro livro editado em situação de exílio, no Brasil, consequência do seu envolvimento no falhado “Golpe da Sé”, estrangulado pela PIDE. O volume é lançado em 1963; e, em 1964, dá-se o golpe militar no Brasil, e vê-se o poeta novamente obrigado a fugir, desta vez para os Estados Unidos, vendo-se duplamente exilado.
Metamorfoses é um livro que não fala de liberdade, mas mostra-a, exibe-a, exerce-a: a arte metamorfoseando-se em sentidos, revolucionando-se livre para lá das suas matérias, arrastando consigo a língua em mudança, e, nela, a humanidade. É dos primeiros livros portugueses de experimentação ecfrástica, ou seja, aqueles em que os poemas assumem artefactos artísticos como o seu referente concreto e explícito: numa página a fotografia, o objecto artístico, o artefacto, de outro o poema. Aqui, os poemas, em diálogo – ou confronto – com as imagens (pintura, escultura, fotografia, arquitectura, objectos concretos, aliás, também uma cadeira e o satélite Sputnik), mostram bem como o verdadeiro poder da palavra não está em nomear, dizer, ou repetir, mas em criar, modelar, transformar. Toda uma narrativa histórica, sequencial está presente na sucessão de imagens reproduzidas no livro, que são refeitas poeticamente, mesmo quando os números se recusam a contar a nosso favor. Estes poemas, explica Sena, no posfácio à primeira edição, são consequência de deambulações livres nos museus e galerias britânicas, que lhe mostraram “a comovente historicidade da natureza humana”. “[...] Eu sei que os povos só valem como humanidade, nunca valeram como outra coisa. E a alegria que sinto no museu britânico, no Louvre [...] não provém desta ser milenária, estranha, distante, bárbara ou requintada, mas de eu sentir em tudo, desde as estátuas aos pequeninos objectos domésticos, uma humanidade viva, gente viva, pessoas, sobretudo pessoas.” A pintura Fuzilamento de 1808, de Goya, que acompanha o paradigmático poema “Carta aos meus filhos”, a par do poema “Camões dirige-se aos seus contemporâneos”, ou da geometria poética da nave do Mosteiro de Alcobaça, é, sim, uma reflexão sobre a História – melhor, são História fazendo-se sobre história exacta das pessoas e das palavras, subtraindo-se à inexactidão dos números, das contas e datas certas. Diz-nos ainda Jorge de Sena, no mesmo texto: “E se não fora a poesia olhando a história, nenhuma vida em verdade reconheceríamos, nem a nossa própria.” É aqui, afinal, mesmo que nada nos “salve desta porra triste”, que se descobre no entulho e nos escombros das palavras um modo de “não desesperar da humanidade”. Com as palavras, nem tanto com a rispidez agreste dos números, é que devíamos aprender a contar.
Jorge de Sena, Metamorfoses, Assírio & Alvim, 2024 (prefácio de Ricardo Marques)
Duarte Belo (fotos) e Fernando Alves (texto), Onde Vais por Esse Trilho com o Canto da Toutinegra, Museu da Paisagem, 2024
Pudesse um Orçamento ser um céu estrelado…
Fernando Alves
Haverá inumeráveis razões para termos escolhido, nesta edição do podcast Um Pouco Mais de Azul, a palavra “número”. Na verdade, não me ocorre nenhuma. Haverá, digamos, n razões. N é o número que perdeu o úmero? Não creio que seja, até porque N representa um conjunto de números inteiros. Sem o úmero não podemos dar o braço a torcer, emendar a mão, refazer as contas. O corpo humano tem 206 ossos, se estiver inteiro. E o ouvido médio tem 6, se bem escutei. São números duros de roer.
Os números com que lidamos, lançados das tantas fundas do debate político, são também, pelos vistos, “enganadores”. Foi esta a palavra, clara como o algodão das estatísticas, usada pelo governador do Banco de Portugal, contrariando as contas avulsas feitas por muitos a respeito da alegada fuga de profissionais qualificados para outros países. A fuga é real, na mira de salários mais apetecíveis, a todo o tempo disso temos testemunho, mas tal não invalida que as contas do combate partidário estejam gatadas. Mário Centeno garante que a percentagem de jovens portugueses que emigram é, afinal, inferior àquela que se regista em países como a Alemanha, a Dinamarca ou os Países Baixos. Pelas contas de Centeno ela representa menos de metade do que aquela verificada nesses países. Daí que o governador do BdP faça força numa tecla insuficientemente accionada em tempos de desinformação e de contas complexas.
Nos últimos oito anos – são números de Centeno – a população activa com formação superior aumentou em média 70 mil indivíduos por ano, em Portugal. Ora se os diplomados saídos anualmente das universidades portuguesas andam pelos 50 mil, Portugal é, afinal, um receptor líquido de diplomados. São os noves fora de Centeno respondendo aos “novos fora” de sucessivas oposições.
Eis, em números redondos, o rol de licenciados, do qual valeria a pena extrair os licenciosos: são, talvez, esses que gatam os números e forjam as fórmulas que permitem viciar o debate avulso: algum paleio corrente será alimentado nessa precisa circunstância de que cada qual faz o seu número. Chegará o dia em que, confrontado com números irrefutáveis, um interveniente no debate público, licenciado ou não, terá a elegância e a fineza democrática de fazer vénia aos números exibidos pelo adversário de ocasião: “Peço desculpa, estava equivocado.”
Entretanto se ouvires na rádio ou noutro meio a garantia de que “portugueses acertam em quatro números e duas estrelas”, não é matemática, nem astronomia: será o Euromilhões.
Assim ou assado, a calculadora de Miguel Albuquerque garante que “André Ventura quer é números de circo”. Montenegro manteve Moedas como número um do conselho nacional. A Feira da Castanha de Carrazedo de Montenegro teve o maior número de expositores de sempre. Número de pessoas em situação de sem abrigo aumentou 23% em 2023 (palavra de ministra)). E o ministro das Finanças fez saber que, caso o Orçamento seja aprovado, “a economia vai crescer muito acima” dos números que ele próprio apresentou. Por que raio não apresentou ele, nesse caso, números mais ousados, mais arrebatadores? Faço a pergunta na minha qualidade de zero à esquerda, entrando em terrenos de Francisco.
Na verdade, Sarmento talvez não tenha aquilo a que Drummond chamou, num poema, “coração numeroso”. É esse um belo poema que nos leva ao Rio e durante o qual o mineiro Drummond se espanta sob um céu de “estrelas inumeráveis”. Pudesse um orçamento ser um céu estrelado…
Isso me leva a um número maior que os do Orçamento todos juntos; aquele que, procurando números extravagantes, encontrei numa notícia de há dez anos. Contava a notícia que “o vertebrado mais numeroso do mundo é um peixe que brilha no escuro, o boca-de-cerdas”. Trata-se de um peixe do tamanho de um dedo. Há dez anos, o jornal brasileiro onde li a notícia contava 24 biliões de bocas-de-cerdas, nas profundezas do oceano. Quantos serão hoje, perdidos num mar de plástico?
Qual peixe escapando à rede, também nos acontece dizer a amigos reencontrados: “Perdi o teu número.” Os números são dados a desencontros, embora se escute amiúde a expressão “encontro de contas”. Num certo poema da Szymborska, intitulado “Engano”, soa o telefone à meia-noite na galeria onde “apenas obras de arte velam”. Mas o poema caminha para um desfecho ímpar, detém-se na criatura que, algures na cidade, continua a segurar ingenuamente o telefone, depois de ter discado um número errado. “Ele vive, logo se engana”, remata o poema.
Andamos todos a contar pelos dedos, nossos e alheios. E por isso nos escapa, tantas vezes, a “triste história do zero poeta” contada pelo genial Manuel António Pina, no Pequeno Livro de Desmatemática. Era “um zero dado à poesia / que tinha um sonho secreto: / fugir para o alfabeto”, um “zero com alma de letra”, que sonhava ser um ó.
Folheamos os jornais: tantos números de histórias mal contadas.
Tantas contas tão mal amanhadas que, ao escutá-las, nos resta encolher os ombros e responder: “Muito me contas.”