Na COP29, ninguém mostra as cartas — com suspense até ao fim

No centro do debate está quem deve pagar a protecção dos países mais pobres contra os efeitos das alterações climáticas. As emissões de poluentes servem de arma de arremesso para quem não quer pagar.

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Manifestantes encenam protesto na COP29 exigindo financiamento para os países mais vulneráveis às alterações climáticas Aziz Karimov/REUTERS
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Na COP29, há documentos sobre o financiamento climático e o corte de emissões de gases com efeito de estufa, mas não satisfazem ninguém. Falta avançar números concretos sobre o novo valor anual do financiamento para os países mais vulneráveis se adaptarem aos efeitos mais graves das alterações climáticas e reduzirem as suas emissões de gases com efeito de estufa. A 29.ª conferência da Convenção do Clima das Nações Unidas, a COP29, devia terminar esta sexta-feira, em Bacu, no Azerbaijão, mas toda a gente está a apostar no prolongamento, pelo menos até sábado.

O grande carrossel anual da diplomacia climática está a girar devagarinho e todos os jogadores guardam as cartas bem junto do peito, produzindo um impasse que não há meio de aliviar. É verdade que esta quinta-feira, pelas 8h de Bacu, era ainda de madrugada em Portugal, foram publicados dois documentos: um sobre a mitigação (redução de emissões de gases com efeito de estufa), e outro sobre financiamento climático.

Mas rapidamente se soube que a União Europeia estava contra. “Inaceitável”, afirmou o comissário europeu para o clima, Wopke Hoekstra. Inicialmente não se percebeu exactamente o que achava intolerável, mas o neerlandês explicou. A UE não aceitaria nenhum dos dois documentos tal como estava.

“Temos de fazer mais na mitigação, e não menos do que o Consenso dos Emirados Árabes Unidos”, obtido na COP28, no ano passado, explicou Hoekstra, numa declaração. E o texto sobre a nova meta de financiamento para os países mais vulneráveis às alterações climáticas, após 2025 é “desequilibrado, impossível de usar e inaceitável”. E este foi o mote para um dia de negociações, sem que se tenha chegado a um consenso.

Falta de vontade

“Há duas questões essenciais”, explicou mais tarde ao PÚBLICO, em Bacu, a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, antes de chegarem os pastéis de nata com que o pavilhão de Portugal na COP29 foi encerrado.

Ponto um, o documento da mitigação mostra falta de vontade, é um retrocesso em relação aos compromissos obtidos no ano passado, na COP28, de fasear a transição dos combustíveis fósseis, duplicar a eficácia energética e triplicar as energias renováveis. Isto é inaceitável”, disse a ministra portuguesa.

O ponto dois tem que ver com uma crítica que está a ser feita à União Europeia, que é não se estar a comprometer com novos montantes para o quadro de apoio climático a partir de 2025. “Estamos dispostos a aumentar o financiamento, mas só se os países que [ao abrigo da Convenção da ONU das Alterações Climáticas, de 1992] não são considerados desenvolvidos, como a China, ou a Arábia Saudita, mas que hoje têm muitas emissões [de gases de estufa], se comprometerem a contribuir”, adiantou Graça Carvalho.

“O texto proposto para a mitigação é extremamente pobre, limitado. É um repositório, um apelo à compilação das políticas que os países podem e devem fazer, mas não compromissos de redução de emissões [metas nacionais determinadas ou NDC na sigla em inglês], que actualmente nos levam para um aquecimento global de 3,1 graus em 2100”, explicou Francisco Ferreira, dirigente da organização ambientalista Zero. Bem longe dos 1,5 graus Celsius, no máximo dois, de que fala o Acordo de Paris. “É tudo menos ambicioso.”

Oito ou 80

Já o documento específico sobre financiamento, que apresenta alternativas para um novo quadro de apoio à preparação dos países mais vulneráveis às alterações climáticas a partir de 2025 (o quadro anterior previa 100 mil milhões de dólares anuais, pagos pelos países mais desenvolvidos, mas só foi cumprido em 2022), apresenta duas propostas, “uma é oito e outra é 80”, diz Francisco Ferreira.

Grosso modo, a hipótese um (ou “oito”, nesta analogia) fala apenas da necessidade de “aumentar a escala do financiamento climático a nível global” para atingir os objectivos do Acordo de Paris. Fala em atingir um valor de “X” biliões” (à portuguesa, equivalente aos trillions anglo-saxónicos) até 2035, mas incluindo todas as fontes de financiamento.

Já a outra hipótese (que seria o “80”, e que é apoiada pelos países em desenvolvimento e as organizações não governamentais) prevê esses mesmos “X” biliões anuais, pagos pelos países desenvolvidos, e especifica que devem ser canalizados sob a forma de doações – e não empréstimos, que fazem aumentar a dívida das nações mais pobres e agravam os seus problemas.

Bem entendido, nenhuma das hipóteses quantifica o valor, o tal “X” – a grande incógnita desta COP29. É aqui que entram a China e outros países que na Convenção das Alterações Climáticas, de 1992, foram classificados como nações em desenvolvimento, mas que são hoje grandes poluidores e bem mais ricos do que então.

A UE, que é o maior doador internacional, mantém as suas cartas escondidas até haver uma abertura nestas negociações com a China e outros grandes poluidores. O braço-de-ferro está a transformar-se num filme de suspense.

O PÚBLICO viajou a convite do Ministério do Ambiente e Energia