“As indústrias química e petroquímica precisam de transformar-se e de descarbonizar”
Em entrevista, Manuel Gil Antunes, CEO da HyChem, revela o caminho que o grupo industrial está a seguir rumo à descarbonização e à reindustrialização.
Com 90 anos, é através de uma visão e de uma mentalidade inovadora que se apresenta ao mercado, pronta para liderar a transformação energética. Na Póvoa de Santa Iria está a nascer um BioCluster que promove a descarbonização e a inovação sustentável, por intermédio de iniciativas de economia circular, produção de hidrogénio verde e novas soluções tecnológicas.
A HyChem está a operar uma grande transformação, com vista à descarbonização do negócio. Qual o caminho que estão a seguir?
Quando chegámos a este site industrial, o proprietário era a Solvay Portugal, que aqui estava há 90 anos. A partir do ano 2000, os custos de contexto da indústria na Europa e, sobretudo, na indústria em Portugal levaram a um processo progressivo de desinvestimento, designadamente os custos associados à energia e os custos regulatórios e ambientais. Portanto, este site, que chegou ao seu auge no ano de 2000, com mais de mil trabalhadores, entrou num processo de progressivo encerramento e de redução da actividade. Em 2017, os actuais accionistas e a administração, fomos contactados pela Solvay para implementar aqui soluções de descarbonização que tornassem este site o primeiro neutro em carbono do grupo Solvay em todo o mundo. E endereçámos esse desafio através de tecnologias de microalgas. As microalgas são plantas aquáticas que, durante a fotossíntese, fazem a captação de carbono e também o tratamento de águas residuais. Instalámos aqui esse projecto, mas, em 2020, o Grupo Solvay decidiu, ainda assim, deixar Portugal, e nós fizemos o movimento para comprar a empresa para evitar esse encerramento. Desde então iniciámos um processo de reindustrialização, utilizando precisamente as nossas ferramentas de descarbonização como instrumento para fazê-lo. E cremos que esse conceito faz muito sentido, e faz deste sítio um laboratório vivo que ilustra como podemos utilizar a necessidade de descarbonização e de transição energética para a reindustrialização, porque Portugal precisa.
Este é, portanto, um grande desafio e uma grande responsabilidade.
Sim, porque a indústria é muito necessária. É necessária e é necessária próxima, não só porque as crises recentes tornaram claras as dificuldades inerentes às cadeias de abastecimento longas, mas também porque o país precisa de se desenvolver do ponto de vista económico, geoestratégico. Precisamos de ter um desenvolvimento equilibrado, com a produção industrial mais próxima dos pontos de consumo. E este é o nosso ADN, é aquilo que fazemos aqui, e desde 2020 implementamos essa estratégia. Primeiro com fortes investimentos na produção de energia renovável para autoconsumo, sobretudo fotovoltaica, mas também eólica, e depois tirando partido de uma actividade que se faz aqui há 90 anos, que é a produção de hidrogénio. Produzimos hidrogénio como matéria-prima para outros processos e para a produção de produtos de grande consumo. Por exemplo, o hidrogénio aqui produzido serviu para ajudar a produzir vidro na Saint-Gobain, a três quilómetros de distância.
Ou seja, a HyChem está a apostar na produção de hidrogénio para a indústria em geral?
Sim, mas não só. Produzimos o hidrogénio, e temos um pipeline que nos liga às indústrias mais próximas. No entanto, estamos também a fazer um investimento que prolonga esta conduta até à rede de gás natural em Frielas, de forma a podermos injectar o hidrogénio na rede de gás natural, com o objectivo de descarbonizar o consumo do gás. O gás, sendo melhor do que o petróleo, em termos de emissões - o gás natural emite menos CO2, mas ainda assim emite – pode ser mais verde com a injecção de hidrogénio porque não há carbono no hidrogénio. Vamos injectar 20% de hidrogénio no gás natural e, assim, reduziremos as emissões daquele gás. Do ponto de vista do utilizador, até esta percentagem de 20%, não é necessário fazer qualquer adaptação da rede nem dos queimadores. Mas, além disso, este processo é particularmente relevante para a modernização da rede de gás natural. Portugal foi o último país da Europa a introduzir o gás natural nas suas redes pelo que, quando a Comissão Europeia, já há cerca de 10 anos, anunciou como objectivo deixar de utilizar o gás natural, isso fazia bastante sentido para as redes já amortizadas dos outros países, mas era bastante complicado para a nossa. Por outro lado, por termos sido os últimos, a nossa rede é também a mais moderna, e aquela que está mais bem preparada para acolher a transformação. O que fazemos é, em vez de deitar fora um activo, que é a nossa rede de gás natural, prolongamos a sua vida melhorando o desempenho do ponto de vista de emissões de carbono com esta injecção de hidrogénio.
Mas gradualmente, no futuro, será preciso, começar a substituir essa rede?
Exactamente. Portanto, haverá sempre troços de nova rede dedicada a hidrogénio. E este é o caso do contrato que estamos neste momento a fechar para a construção de uma rede dedicada a hidrogénio, daqui até Frielas. Depois faremos uma extensão que irá estender-se de Sacavém até Castanheira do Ribatejo, para fazer toda essa ligação. Mas o que vai acontecer também de forma bastante interessante é, no âmbito do plano do biometano, a descarbonização da rede de gás natural que vai avançar também. Nesta, o gás natural é substituído pelo biometano. Isto é, gás que tem as mesmas características do gás natural, mas que é de origem biológica. E por essas duas vias - o biometano e o hidrogénio -, Portugal prolongará a vida das actuais redes.
Além deste projecto, terão também em breve um posto de abastecimento de hidrogénio...
Sim, e é algo pioneiro. A entrada em funcionamento será em final de Janeiro de 2025, e será um posto de abastecimento de hidrogénio para veículos pesados e ligeiros, e para uma utilização pública e privada. A instalação visa servir dois parceiros empresariais do sector da mobilidade e permitir o arranque, no segundo semestre de 2025, de uma frota logística própria, movida a hidrogénio, potenciando a disponibilidade do recurso para autoconsumo. Alem disso, e ainda no que se refere ao nosso trajecto de reindustrialização, concretizado através das nossas próprias forças e das nossas tecnologias, investimos numa outra frente, também ligada ao nosso ADN de base biológica. Instalámos, em Maio passado, uma indústria de ingredientes alimentares produzidos por via fermentativa e biológica, que se junta a outras duas – uma para a produção de biomassa (a operar desde 2022), e outra para produção de ingredientes para rações de aquacultura, com amplo recurso ao hidrogénio verde como matéria-prima. O investimento total nestas três unidades industriais é superior a 60 milhões de euros.
Estão a investir na circularidade no cluster industrial da Póvoa, e na criação de sinergias com empresas circundantes?
Temos, de facto, um projecto de cluster para esta região, a que chamamos BioCluster, um conceito muito querido também aos municípios aqui à volta, nomeadamente, Vila Franca de Xira e Loures. Este projecto visa replicar este conceito de indústria, em que a energia assenta em bases renováveis, na utilização do hidrogénio e de outros gases renováveis, na gestão eficiente da água, no tratamento e na reutilização da água industrial e na captação do CO2 para a produção de produtos de base biológica, fazendo a captura e a utilização, e depois reintroduzindo esses produtos na economia como fertilizantes. Isso é o que fazemos aqui, neste espaço da Zona Industrial da HyChem, e que pretendemos replicar neste eixo que começa em Sacavém e que vai até Castanheira do Ribatejo, também numa lógica de partilha de infra-estrutura entre os agentes económicos que estão neste eixo, e em simbiose com a comunidade, porque as comunidades têm de funcionar de forma equilibrada, gerando emprego, mas gerando também qualidade de vida, melhorando a mobilidade. Portanto, estes são os eixos deste projecto integrado.
Como se transforma um gigante da petroquímica, seguindo uma lógica de inovação, mais característica de uma start-up?
Actualmente, as indústrias química e petroquímica precisam de transformar-se e de descarbonizar o seu negócio. Se não o fizerem terão um problema. O processo de transição energética não é opcional e, mais depressa ou mais devagar, tem de acontecer, até porque as populações também o exigem. Assim, é incontornável criar uma divisão, ou um departamento, que funcione mais na lógica das start-ups, porque é preciso inovar e fazer as soluções chegarem ao mercado. É evidente que na indústria é bastante difícil conciliar a actividade industrial do dia-a-dia com o mindset de inovação. No nosso caso, temos uma empresa industrial que cresceu a partir de uma base de inovação e de investigação e desenvolvimento. Esse é o nosso ADN, mas percebemos que é preciso continuar com esse ADN de inovação na empresa de base industrial, respeitando a actividade industrial.
Criaram uma empresa com este propósito?
Sim, a HyVeritas, uma participada para desenvolver tecnologias nesta área. E, nesse sentido, fizemos uma parceria com uma outra empresa portuguesa chamada Tecnoveritas para desenvolver três tecnologias associadas ao hidrogénio. A primeira é o novo electrolisador, no qual adaptámos uma tecnologia nossa comprovada, com 90 anos, mas inovando-a. Esse projecto já deu um fruto, que é a aprovação, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), de um investimento de cerca de 9 milhões de euros numa fábrica de electrolisadores que vamos instalar em Torres Vedras, e é instrumental em todo o processo de descarbonização que vai ser feito através da fileira de hidrogénio. Para se produzir hidrogénio, uma peça chave é o electrolisador, pelo que nós estaremos a fornecer a indústria. Lá está uma visão de reindustrialização alinhada com a necessidade de uma fileira de energia. A segunda linha de desenvolvimento tecnológico é uma tecnologia para o armazenamento e o transporte de hidrogénio. Um dos maiores desafios do hidrogénio é o transporte, porque é muito leve. Portanto, precisa de ser comprimido, a pressões muito altas, e é muito explosivo. Estamos a usar uma tecnologia, desenvolvida em conjunto com o Instituto Superior Técnico, para podermos armazenar e transportar o hidrogénio à temperatura ambiente e à pressão atmosférica. Uma tecnologia que se chama Liquid Organic Hydrogen Carrier (LOHC), que reduzirá substancialmente o custo do transporte e do armazenamento de hidroxílicos. E a terceira linha de desenvolvimento de inovação permite que veículos a combustão passem a queimar hidrogénio. A primeira experiência que fizemos foi com um Renault Clio que tem um kit, como se fosse GPL, para utilizar hidrogénio. A segunda é a criação de um motor marítimo, que estamos a reconverter para utilizar hidrogénio, uma parceria com a Mitsubishi. Esse projecto pode ser o embrião para vir a instalar aqui um centro de teste de motores. Adicionalmente, pretendemos desenvolver outros kits de conversão de motores, porque, quando falamos em descarbonização temos de pensar no ciclo de vida completo. Quando construímos de raiz novos veículos eléctricos ou hidrogénicos esquecemos os milhões que existem no mercado. E esse é um dos problemas desta transformação. A nossa abordagem é transição, não é revolução, não é desligar o que existe. Inovamos porque faz sentido.
Outro projecto importante é a exploração das minas de sal-gema, no Carriço e em Torres Vedras. Quais as metas e o seu potencial?
A HyChem é concessionária das duas minas de sal-gema que existem em Portugal. Só para termos uma noção, até 2016, Portugal produzia sal industrial suficiente para o seu consumo e para exportar. Actualmente, o país importa todo o sal porque as duas minas não estão em exploração. Nós pretendemos retomar a sua exploração, introduzindo uma inovação significativa na cristalização do sal, de forma a podermos substituir importações. Portanto, vai estar nesta lógica de encurtamento das cadeias de valor. Por outro lado, pretendemos voltar a produzir cavidades que possam ter utilização para o armazenamento de quatro coisas: gases renováveis, hidrogénio, dióxido de carbono, e combustíveis, substituindo os grandes depósitos a céu aberto, que constituem um risco acrescido. Estas cavernas são extremamente estanques e seguras. É assim que está hoje armazenada toda a reserva de gás natural que existe em Portugal.
Este conteúdo está inserido no projecto "Descarbonização: que caminho para Portugal?", que inclui ainda case studies de empresas nacionais e uma conferência dedicada ao tema da descarbonização em Portugal.