Um novo estudo mostra os efeitos que o aumento das temperaturas já está a ter no número de casos de dengue. Através de uma análise feita a 21 países, do Brasil à Indonésia, entre 1995 e 2014, uma equipa de investigadores calculou que 19% da incidência daquela doença foi provocada pelo aquecimento global. Esta tendência deverá continuar no futuro e, em algumas regiões, o número de casos de dengue poderá duplicar nas próximas décadas, adianta a investigação.
“Pelo que sabemos, este é o primeiro estudo a quantificar os impactos das alterações climáticas que já ocorreram na dengue”, diz ao PÚBLICO Mallory Harris, investigadora da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos (EUA), que assinou o trabalho liderado por Erin Mordecai, da Universidade de Stanford, também dos EUA.
A investigação foi divulgada neste sábado no encontro anual da Sociedade Americana para a Higiene e a Medicina Tropical, que decorreu em Nova Orleães. “Olhámos para a informação da incidência da dengue e da variação climática em 21 países na Ásia e nas Américas e descobrimos que existe uma relação clara e directa entre o aumento de temperaturas e o aumento de infecções”, disse Erin Mordecai, citada num comunicado daquela sociedade. “É uma prova de que as alterações climáticas já se tornaram uma ameaça significativa para a saúde humana e, no caso da dengue em particular, os nossos dados sugerem que o impacto poderá tornar-se muito pior.”
A dengue é causada por um vírus transmitido pela picada de mosquitos do género Aedes, como o A. aegypti e o A. albopictus. Muitas vezes a infecção pode ser assintomática ou causar sintomas mais ligeiros. Mas em alguns casos pode provocar febre, dores corporais e, em situações mais graves, hemorragias e a morte. A doença é endémica nas regiões tropicais e subtropicais em todo o mundo. Com a expansão do seu vector, como está a ocorrer com o A. albopictus na Europa e em Portugal, teme-se que a doença afecte cada vez mais regiões.
“A incidência global de dengue tem aumentado marcadamente nas últimas duas décadas, colocando um desafio à saúde pública substancial”, lê-se no site da Organização Mundial da Saúde (OMS). “De 2000 a 2019, a OMS documentou dez vezes mais casos a nível mundial, aumentando de 500.000 para 5,2 milhões.”
Entretanto, a dimensão do problema tem continuado a aumentar. Só neste ano, até ao início de Outubro, o Brasil teve 6,5 milhões de casos de dengue e 5536 mortes, um número cinco vezes superior ao de 2023, de acordo com uma nota do Conselho Federal de Enfermagem do Brasil.
Futuro com mais dengue
A hipótese de que um aumento da temperatura, causado pelas alterações climáticas, poder ter um papel no crescimento de casos está ligada à investigação feita por Erin Mordecai em 2017 sobre as condições óptimas para o mosquito Aedes produzir e transmitir o vírus. A temperatura corporal do mosquito depende da do ambiente, já que o insecto não consegue controlar a sua própria temperatura.
De acordo com o trabalho da investigadora, à medida que a temperatura externa aumenta, o mosquito tem cada vez mais capacidade de transmitir o vírus, atingindo um patamar óptimo de temperatura ambiente entre os 26 e os 29 graus Celsius. A partir daí, a sua capacidade de transmitir o vírus não melhora, até pode piorar um pouco. Por isso, as geografias cujas temperaturas médias estão a subir para a casa dos 20 graus estão a providenciar as melhores condições para o mosquito transmitir a doença.
Para testar se este fenómeno já estava a ocorrer, a equipa foi analisar a evolução da incidência da doença em 21 países, entre 1995 e 2014, como a Bolívia, o Brasil, a Colômbia, a Indonésia, o Laos, o México, o Peru, a Tailândia, o Vietname, entre outros. Depois, compararam as temperaturas registadas naquelas regiões com as temperaturas produzidas num cenário sem a influência das alterações climáticas. Ou seja, em que não houvesse aumentos de temperatura.
Ao mesmo tempo, através de um método matemático, conseguiram isolar o efeito do aumento de temperatura na ocorrência da dengue de outros factores que também são importantes para a doença, como o grau de urbanização, a pirâmide etária de uma região, a imunidade de uma população e os recursos de saúde. Com isso, descobriram o impacto regional do aumento de temperatura na doença.
“As estimativas variam muito entre países e dentro dos países, com áreas mais frias da Bolívia, do Peru, do Brasil e da Colômbia a terem um aumento da dengue existente na ordem dos 30 a 40% devido às alterações climáticas e países mais quentes como a Tailândia e o Camboja a serem pouco impactados pelo aquecimento já existente”, lê-se no manuscrito do estudo, que ainda não foi publicado numa revista científica.
O estudo prevê ainda que o impacto do aumento de temperatura irá continuar. “Independentemente do cenário de emissões [de gases com efeito de estufa], podemos esperar um aumento na incidência da dengue a meio do século. No entanto, limitar as emissões colocar-nos-ia num cenário de aumento de 40% da incidência, enquanto num cenário de muitas emissões, esse aumento seria de 60%”, explica Mallory Harris, mostrando como a gravidade deste impacto futuro dependerá da atitude que a humanidade vai ter em relação às emissões de gases com efeito de estufa, que estão na origem das alterações climáticas.
“Pelo menos 257 milhões de pessoas vivem em lugares onde o aquecimento climático poderá fazer com que a incidência da dengue duplique nos próximos 25 anos. O Rio de Janeiro e São Paulo são lugares onde se pode esperar um grande aumento da incidência de dengue com o aumento do aquecimento”, exemplifica a investigadora. Já regiões com temperaturas médias mais elevadas, como o Sul do Vietname, não terão um aumento da incidência da dengue devido a um clima mais quente, de acordo com as estimativas do estudo. Antes pelo contrário, o aumento do calor pode provocar uma pequena diminuição da doença. De qualquer modo, 17 dos 21 países estudados vão estar sujeitos ao aumento da incidência da dengue, refere a equipa.
Como o trabalho se focou apenas na variação das temperaturas, estes resultados não têm em conta outros impactos das alterações climáticas, como as mudanças no padrão das chuvas, que podem influenciar a sobrevivência do Aedes. No entanto, o manuscrito adianta que a investigação pode ser importante para projectar políticas de saúde pública contra a doença. Além disso, o trabalho abre a porta para outros estudos de atribuição do papel das alterações climáticas no maior impacto de doenças infecciosas, tal como se tem feito nos últimos anos para fenómenos climáticos.
Por fim, a equipa defende que a pesquisa é importante para sustentar casos legais do impacto das alterações climáticas nas populações. “As iniciativas de justiça climática apoiam-se em estimativas do custo [dos impactos] de alterações climáticas que já ocorreram”, explica Mallory Harris. “No entanto, os custos de saúde, particularmente aqueles causados por doenças provocadas por vectores, ainda não estão muito bem documentados, o que significa que estas estimativas podem estar incompletas.” Este estudo é um passo em frente para fechar essa lacuna.