Quando a solidariedade fala mais alto: das empresas de tecnologia à população carente

A gaúcha Lisiane Lemos, advogada de formação, passou pela Microsoft e pela Google antes de migrar para o setor público para trabalhar com populações que, muitas vezes, estão esquecidas pela sociedade.

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Lisiane Lemos conseguiu quebrar a barreira para entrar na área da tecnologia Jair Rattner
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Durante o Web Summit, em Lisboa, a advogada Lisiane Lemos, 35 anos, acompanhou alunas da rede pública do Rio Grande do Sul que venceram um concurso estadual para conhecer o principal evento de tecnologia de Portugal. E ainda participou do Afro Meet, encontro no qual afrodescendentes dos países de língua portuguesa discutiram a pouca representatividade que negros têm na indústria tecnológica.

Advogada, formada em 2013 pela Universidade Federal de Pelotas, Lisiane foi para Moçambique logo depois de terminar o curso. “Eu me formei e fui para lá, trabalhar no terceiro setor”, conta. O trabalho consistia no desenvolvimento organizacional e na expansão dos escritórios locais de uma ONG voltada para a formação de lideranças. Mas um imprevisto a fez retornar ao Brasil. “Foi um acidente. Estava em Moçambique havia menos de um ano, e caí num bueiro", lembra.

O tratamento médico no país africano não estava ajudando e o seguro de saúde que ela tinha exigia que pagasse todas as contas para, depois, apresentar os recibos e pedir o reembolso, o que estava custando uma fortuna. A opção foi voltar para o Rio Grande do Sul. “Desempregada, fui morar com meus pais”, diz. Foi, então, que a gaúcha resolveu mudar de área. Candidatou-se a um programa de trainee na Microsoft e acabou escolhida. Passou a atuar junto à área de vendas. “Trabalhava com o suporte técnico. A nossa tarefa era impedir que as crises acontecessem”, descreve.

Lisiane afirma que tinha tudo para não ser aceita: formação fora da área tecnológica, negra, mulher, vinda de fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo. “Não me lembro de, na Microsoft, até 2013, ter pessoas negras. E, mesmo anos depois, acho que havia apenas cinco mulheres negras trabalhando na empresa”, recorda.

Essa experiência a fez refletir sobre a situação. “Cheguei à conclusão de que existe o desejo das empresas de tecnologia de contratar pessoas negras e existe o desejo das pessoas negras de trabalhar nessas empresas. Mas ambos os lados não conheciam os meios”, avalia.

Em 2019, Lisiane mudou de empresa. Deixou a Microsoft e foi para a Google. Só que o trabalho enfrentou um contratempo. “No dia 13 de março fui para o Rio Grande do Sul, para o aniversário do meu pai, que fazia 60 anos. E, quando estava lá, começou a quarentena da pandemia do novo coronavírus. Tive que ficar seis meses em Pelotas, com a casa fechada em São Paulo, pagando aluguel”, lembra.

Nesse período em que esteve isolada, começou a pensar no futuro. “O último degrau da carreira profissional em uma empresa é ser membro do Conselho de Administração. Comecei a pensar o que eu queria ser daqui a 20 anos e o que precisaria para integrar o tal conselho”, ressalta Lisiane. Além da formação técnica e do percurso profissional, ela chegou à conclusão de que 70% dos requisitos para ser um dos administradores de uma empresa estão relações, no networking.

Como consequência, ela fundou a Conselheira 101, um instituto que apoia mulheres negras na jornada para o Conselho de Administração de empresas. "O alvo é quem tem alta carreira executiva e expertise nas áreas em que atua”, explica. Os cursos são online. “A partir da quarta turma, começamos a aceitar também mulheres indígenas, além de negras”, diz Lisiane.

Serviço público

A mudança para o setor público se deu no começo de 2023. “Em janeiro daquele ano, o governador Eduardo Leite (do Rio Grande do Sul) me fez o convite para estruturar a Secretaria da Inclusão Digital e Apoio às Políticas de Equidade. A missão: criar políticas de formação digital com atenção especial para populações menorizadas e vulnerabilizadas”, conta. Lisiane usa o termo menorizadas em referência a grupos que, apesar de não serem minorias, são tratados como se fossem, como é o caso das mulheres, maioria da população.

A gaúcha explica que o trabalho dela não é uma ação afirmativa. “É política para o povo, para mulheres, idosos e pessoas com deficiências. Está voltado para o futuro”, afirma. “O Rio Grande do Sul é o estado mais longevo do Brasil, com 20% das pessoas com mais de 60 anos. Temos um bônus demográfico negativo, e a população jovem vai embora", afirma.

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O AfroMeet, que discutiu a presença de africanos e afrodescendentes na área das tecnologias Jair Rattner

Não só. "As pessoas mais velhas têm dificuldade com a tecnologia, e hoje tudo é feito pela Internet: o PIX, o Gov.Br, o Conect SUS, o Portal do Servidor. Sem acesso a essas ferramentas, não têm cidadania”, observa. Por isso, Lisiane elegeu como um dos trabalhos prioritários a literacia digital dessa população.

Mas os jovens também merecem atenção especial, com formação para novas profissões. “O grande problema para esse grupo é como conseguir uma oportunidade para o primeiro emprego. As empresas querem sempre alguém que não seja júnior, que tenha experiência”, diz Lisiane.

Enchente

Desde 1º de maio deste ano, com as chuvas e inundações que atingiram 95% dos municípios gaúchos, deixando 600 mil pessoas desabrigadas e 195 mortos, a secretária viu seu trabalho ganhar uma dimensão maior. E ela reconhece que, passados cinco meses da tragédia, nem tudo está resolvido no Rio Grande do Sul. “Em alguns territórios, ainda temos 20% das pessoas fora de casa. Há 2 mil pessoas abrigadas e 37 desaparecidos”, contabiliza.

Na casa dos pais, ela própria sentiu o impacto do estrago provocado pelas mudanças climáticas. “Ficamos em água, sem Internet, sem acesso a várias coisas", lembra. Mas a solidariedade tem feito a diferença. "Trabalhamos para arrecadar cestas básicas, material de limpeza, colchões, tudo o que estava ao nosso alcance para ajudar toda gente”, afirma.

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