Maçarico-de-bico-fino: cientistas defendem que seja declarado extinto
Último registo confirmado da espécie aconteceu em Marrocos, em 1995. Especialistas acreditam que está extinta desde essa altura.
Sem avistamentos confirmados desde 1995, há muito que se temia pela continuidade do maçarico-de-bico-fino (Numenius tenuirostris), e um artigo publicado este domingo na revista internacional Íbis parece confirmar o pior: os autores recomendam que a categoria de conservação da espécie seja actualizada de Criticamente em Perigo para Extinta, na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). “É uma grande frustração andar a falar destas coisas há anos e parece que ninguém ouve”, desabafa o investigador português José Alves, que é editor associado da publicação.
Servindo-se de modelos de avaliação da IUCN, que determinam a probabilidade de uma espécie estar extinta, os autores do artigo chegaram à conclusão que há 96% de hipótese de essa ser hoje a realidade do maçarico-de-bico-fino, uma espécie que durante muito tempo foi bastante comum e que se espalhava por um vasto território, nidificando na Rússia e no Cazaquistão e passando o resto do tempo em espaços tão diversos como a Ásia Central, Europa, Médio Oriente, bacia do Mediterrâneo e a costa noroeste de África. Aliás, o último avistamento confirmado, a 23 de Fevereiro de 1995, foi em Marrocos.
Contudo, os alertas para o declínio da espécie e a probabilidade de ela se extinguir não são de hoje. No artigo Global extinction of slender-billed Curlew (Numenius tenuirostris) os autores lembram que já em 1912 se alertava para o seu declínio e que, pelo menos desde a década de 1940 que se falava na possibilidade de extinção. “Apesar dos avisos, foi só em 1988 que a espécie foi identificada como sendo de grande preocupação ao nível da conservação e classificada como Ameaçada”, refere-se.
O tempo para que algo de mais concreto fosse feito foi, contudo, ainda mais lento. Tal como lembram os autores do artigo, foi só em 1994 que a categoria do maçarico-de-bico-fino na Lista Vermelha da IUCN passou para Criticamente em Perigo e foram precisos mais dois anos depois dessa data para que fosse publicado um plano de acção com vista a preservar a espécie. “A nossa investigação diz que ela estava à beira da extinção ou extinta quando o plano de acção foi publicado”, escreve-se no artigo, com um apelo: “É essencial que sejam retiradas lições da extinção desta espécie.”
Na verdade, os autores não afirmam taxativamente que a espécie se extinguiu - há casos de aves que estiveram sem registos de avistamentos confirmados durante um século e depois foram “redescobertas” -, mas a probabilidade é tão elevada que não têm dúvidas em recomendar que ela seja classificada como Extinta na Lista Vermelha. Na actualização de 2023, aliás, já se considerava que, provavelmente, existiriam menos de 50 exemplares destes maçaricos.
José Alves, especialista em limícolas do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro, não tem esperança de que o destino desta espécie seja diferente da extinção. “Já não há hipótese. Estamos a falar de uma espécie que se distribui numa zona do mundo muito observada. Se fosse num local remoto, mas não. Estamos a falar de zonas húmidas costeiras, onde há muitos observadores de aves. E houve vários esforços de observação para as encontrar, sem qualquer sucesso”, diz.
Se a ave vier a ser classificada como extinta, será apenas a terceira espécie de aves que passa grande parte do seu tempo no Paleárctico Ocidental a sofrer esse destino desde 1500, alertam os autores do artigo. As outras duas nidificavam em ilhas, o que as tornava mais vulneráveis - foram o arau-gigante (Pinguinus impennis), em 1844, e o ostraceiro-das-canárias (Haematopus meadewaldoi), cerca de 1940.
70 anos de espera?
Pode ainda haver, contudo, um caminho longo até que a espécie seja declarada oficialmente extinta. Gonçalo Elias, autor da página Aves de Portugal, recorda que a IUCN costuma aplicar o prazo de 70 anos sem registos verificados para oficializar a extinção. “Não sei se neste caso vão esperar esses 70 anos, mas isto é sobretudo uma grande chamada de atenção e não estamos livres de ver outros casos acontecerem nos próximos tempos”, diz.
E as razões exactas para a extinção, provavelmente, nunca serão conhecidas, apesar de se saberem as principais pressões a que o maçarico-de-bico-fino estava sujeito, e que levaram ao aumento da preocupação sobre o seu futuro ao longo do último século. A perda de habitat e a caça estavam entre as principais, e o chamado “efeito allee” era outra causa apresentada. Este efeito ocorre quando o número de indivíduos de uma espécie é tão pequeno que as hipóteses de um deles encontrar um parceiro para acasalar e nidificar é muito escassa.
No artigo refere-se que “as atenções da conservação chegaram demasiado tarde para o maçarico-de-bico-fino”, apesar dos alertas que se faziam ouvir desde o início do século XX. “Os avisos não resultaram em actos [imediatos]”, dizem. E lembram que é “essencial que sejam aprendidas lições da extinção desta espécie”, até porque há várias outras espécies, sobretudo na chamada Tribo Numeniini (que incluí os maçaricos), que “têm muitas espécies com preocupações de conservação”. Neste grupo, o maçarico-esquimó (Numenius borealis), lembram, “já está classificado como Criticamente em Perigo (Provavelmente Extinto)”, após uma análise realizada em 2018.
O caminho, alertam, só pode ser um: “Para garantir a sobrevivência das espécies costeiras, defendemos acções coordenadas e concertadas ao longo das rotas migratórias”, dizem. Algo que José Alves tem repetido inúmeras vezes nos últimos anos. “Todos os maçaricos são particularmente sensíveis. Esta extinção é uma excelente chamada de atenção para o mundo Ocidental, para se pensar bem o que se anda a fazer em termos de conservação destas aves. Porque se há conservação em alguns países e noutros não, não adianta. A Europa pode ter Green Deals e a rede de áreas de conservação mais importante do mundo, a Natura 2000, mas é nesta rede que estas coisas estão a acontecer”, afirma.
Na página Aves de Portugal, o maçarico-de-bico-fino aparece com a indicação de ter sido inicialmente identificado em 1817 e de ter um único registo confirmado no nosso país, feito algures no Ribatejo em meados do século XIX. A ave foi caçada e estava conservada no antigo museu da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que ardeu em 1978, tendo-se perdido o seu valioso espólio, incluindo este exemplar, recorda Gonçalo Elias. A página já refere que “nem sequer há provas de que a espécie ainda exista”, mas a sua categoria só será actualizada quando e se a IUCN o fizer.
Apesar da “raiva e frustração” que surgem como primeira reacção ao artigo da Íbis, José Alves diz que tem de haver mais do que isso. “Uma das coisas que me faz pensar é que falamos em 20% ou 30% de declínio de algumas espécies e ninguém liga, mas se a Apple descer 2%, meu Deus! O que para mim é estranho, porque a economia de mercado só existe porque há estes ecossistemas que o permitem. O mundo está às avessas e não prestamos atenção ao que realmente importa. Mas tem de haver esperança que isto mude, é preciso continuar a acreditar nisso.”
A IUCN actualizou recentemente a categoria de 16 espécies de aves costeiras migratórias, para níveis de conservação menos favoráveis. Quatro delas invernam em Portugal. Em termos globais, estima-se que 60% das espécies de aves do mundo estejam em declínio e uma em cada oito está ameaçada de extinção.