Os cursos de água doce representam apenas 3% da água disponível no planeta, sendo que a maioria está retida em forma de gelo, estando inacessível ao ser humano. A crise climática tem afectado directamente os rios, que, para milhares de pessoas, são fontes de subsistência. Fenómenos climáticos como as secas severas e as inundações têm destruído centenas de ecossistemas e conduzido à perda da biodiversidade. No entanto, a actividade humana tem tido um impacte na degradação dos rios.
Cláudia Pascoal, directora do Centro de Biologia Molecular e Ambiental (CBMA) da Universidade do Minho, liderou uma investigação internacional publicada na revista Global Change Biology com o objectivo de "representar gradientes realistas de múltiplos factores abióticos [factores que influenciam o ecossistema] que podem potencialmente actuar como factores de stress para os ecossistemas aquáticos", como se pode ler no estudo.
Em 50 locais de cursos de água do Norte de Portugal, os investigadores, em parceria com equipas espanholas, identificaram níveis elevados de dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4). Cayetano Gutiérrez, da Universidade Rey Juan Carlos (Madrid) e co-autor do estudo, explicou, em nota de imprensa, que "muitos rios estão expostos a múltiplos impactos, aumentando assim o risco de agravamento da crise climática se não forem tomadas medidas para melhorar a saúde desses ecossistemas".
O metabolismo dos rios e a biodiversidade
Tal como nós, os rios também possuem metabolismo. Nos seres humanos, este processo corresponde a um conjunto de transformações que as substâncias químicas sofrem no nosso organismo. Neste estudo, os investigadores procuraram entender qual era o estado actual do metabolismo dos rios e de que forma é que estes absorviam os nutrientes e realizavam funções e processos normais aos ecossistemas como o ciclo do carbono.
"A acumulação de múltiplos agentes de stress estava a fazer alterações no metabolismo dos rios, ao ponto de haver uma maior produção de gases com efeitos de estufa", explica Cláudia Pascoal numa conversa por telefone com o PÚBLICO.
A radiação solar que entra na atmosfera da Terra é absorvida pelas superfícies oceânicas e terrestres, o que inclui os rios. Quando o processo se inverte e os rios reflectem essa radiação, libertam os gases como o dióxido de carbono e o metano para a atmosfera. Os níveis elevados destes gases prejudicam as espécies e os seus habitats naturais, influenciam o aquecimento do planeta e contribuem para fenómenos climáticos extremos como a seca e as ondas de calor.
"A intensificação do uso do solo, devido à actividade agrícola, industrial e urbana, e a consequente contaminação dos rios, levou ao aumento do metabolismo dos rios e da concentração de gases com efeito de estufa", clarifica a directora do CMBA. "Temos constatado que os rios mais impactados pela influência humana sofreram uma redução na biodiversidade, não apenas em relação ao número de espécies, mas também quanto ao tipo de espécies e aos traços funcionais — isto é, à variedade e ao tipo de funções ecológicas desempenhadas."
A biodiversidade tem sido particularmente afectada pelo aumento da concentração destes gases nos rios. Apesar de ocuparem uma área pequena, os rios albergam um número muito elevado de espécies – cerca de 10% da biodiversidade global. Uma maior diversidade está também associada a ecossistemas mais saudáveis e ao aumento da provisão de serviços como a regulação do clima, o fornecimento de água e até a produção de energia hidroeléctrica.
O problema da actividade humana
A agricultura é a actividade económica com maior impacto na poluição dos rios. "A intensificação do uso do solo, devido à actividade agrícola, industrial e urbana, e a consequente contaminação dos rios, levou ao aumento do metabolismo dos rios e da concentração de gases com efeito de estufa", desenvolve a co-autora do estudo.
"O nosso estudo mostrou que actividades humanas, como a eutrofização — isto é, o excesso de nutrientes inorgânicos, como os nitratos, na água dos rios devido ao uso excessivo de fertilizantes agrícolas —, conjuntamente com a deplecção de oxigénio e o aumento da temperatura da água, são factores determinantes para alterar o metabolismo dos rios", destaca a investigadora.
O impacto destes gases pode ser desastroso para o ambiente. Segundo contextualiza a cientista, "o dióxido de carbono resulta naturalmente da respiração dos seres vivos, mas a sua concentração tem vindo a aumentar, particularmente desde meados do século XX, sobretudo devido ao uso dos combustíveis fósseis (que levam à emissão estes gases) e à desflorestação (por diminuição do sequestro de dióxido de carbono). Por outro lado, o metano é o principal componente do gás natural, mas a sua produção tem vindo a aumentar com o aumento das actividades agro-pecuárias".
Em concentrações controladas, a presença dos gases com efeito de estufa pode ser benéfica para regular a temperatura da Terra e evitar grandes amplitudes térmicas diárias. "O problema surge pelo aumento contínuo da concentração destes gases de efeito de estufa na atmosfera e que estão a contribuir para o aumento consistente da temperatura do planeta", acrescenta a investigadora.
A COP29, que está a decorrer em Bacu, no Azerbaijão, reúne vários representantes das diferentes nações para debater como limitar a emissão de gases com efeito de estufa e conter o aquecimento global a 1,5 graus Celsius em relação à era pré-industrial. "Devemos ter em conta que o planeta já aumentou, em média, 1,2 graus Celsius e nos últimos anos têm sido registados recordes no aumento da temperatura global. Parece pouco, mas é uma tarefa gigantesca", avisa a investigadora.
"É preciso ter uma visão holística do funcionamento das bacias hidrográficas"
Uma das descobertas mais notáveis que surgiram no decorrer da investigação foi a diferenciação do efeito do dióxido de carbono e do metano nas bacias hidrográficas. A escala espacial dos impactos da actividade humana afecta as concentrações destes gases de maneiras diferentes.
"O dióxido de carbono, sendo muito solúvel em água, pode percorrer longas distâncias no rio e responder a impactos que ocorrem em diferentes pontos da bacia hidrográfica, como a intensificação da actividade agrícola ou o escoamento urbano", explica a investigadora ao PÚBLICO. O metano, por sua vez, "sendo menos solúvel e escapando mais rapidamente para a atmosfera, reage sobretudo aos impactos locais. Contudo, a produção de metano revelou-se um pouco mais complexa, respondendo aos impactos que ocorrem à escala local e àqueles que ocorrem ao nível da bacia hidrográfica", acrescenta.
A investigadora alerta para a necessidade de ter uma "visão holística do funcionamento das bacias hidrográficas", uma vez que diferentes impactos e níveis de gases com efeito de estufa podem alterar a dinâmica dos rios.
Os rios e as estações do ano
A investigação, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e com bolsas da Fundação "la Caixa" e Marie Curie, não vai ficar por aqui. Cláudia Pascoal admite querer avançar com a investigação para um panorama mais extenso, tanto geograficamente como a nível temporal.
"Pretendemos verificar se os padrões observados são consistentes ao longo do tempo e em diferentes regiões macroclimáticas. Para tal, estamos actualmente a avaliar o metabolismo dos rios ao longo das estações do ano e em escalas espaciais mais amplas, o que nos permite também explorar os mecanismos subjacentes a estas observações", acrescenta.
Para reverter a emissão destes gases, é necessário estabelecer uma relação estreita entre os vários agentes políticos e a sociedade. "É fundamental adoptar práticas agrícolas mais sustentáveis, e preservar ou restaurar as florestas ribeirinhas, que fornecem sombra, regulam a temperatura do ar e da água e filtram os contaminantes provenientes do solo. Outras soluções podem passar por melhorar a eficiência do tratamento de águas residuais em zonas urbanas e industriais", comenta a cientista ao PÚBLICO.
"Este trabalho tem ainda implicações significativas para a gestão dos rios, onde as medidas de restauro e mitigação dos impactos muitas vezes se concentram apenas em acções locais. Os nossos resultados reforçam a necessidade de gerir os rios à escala da bacia, com uma visão integrada, não só para preservar a biodiversidade e os benefícios que os rios providenciam à sociedade, mas também para evitar o agravamento da crise climática", conclui Cláudia Pascoal.
Um problema à escala mundial
Um pouco por todo o mundo, os rios têm trazido à tona os sintomas das alterações climáticas. Na Amazónia, rios ricos em biodiversidade secaram devido às vagas de calor, deixando centenas de povos indígenas sem acesso a água potável ou alimentação. Os rios tornaram-se lama e as populações são obrigadas a percorrer dezenas de quilómetros em busca de um resquício de água.
No Alasca, os rios adquirem tonalidades alaranjadas face ao descongelamento do solo no hemisfério Norte e à exposição de minerais ao oxigénio que aumentam a acidez da água. Este fenómeno leva à dissolução de metais como o zinco e o cobre que dão aos rios a tonalidade laranja e põe em risco centenas de espécies e os seus ecossistemas. Por outro lado, os rios também inundam as cidades, tal como aconteceu na Europa Central no mês de Setembro, deixando um rasto de destruição e submergindo as cidades em águas cheias de detritos.
Em todos, os rios assumem facetas nunca antes vistas, fruto das alterações climáticas, com efeitos devastadores não só para o meio ambiente mas também para as espécies, para os habitats e para as economias mundiais. Segundo o relatório Estado dos Recursos Hídricos Globais, com dados de 2023, 50% das bacias hidrográficas mundiais apresentaram anomalias, a maioria delas em défice de água para as actividades económicas como a agricultura, a agro-pecuária e a indústria.
Texto editado por Andrea Cunha Freitas