Perigo de extinção aumentou para 16 espécies de aves costeiras. Quatro delas passam o Inverno cá

Perda ou degradação de habitat, distúrbios, caça e alterações climáticas contam-se entre os factores que estarão a contribuir para o declínio das espécies

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A tarambola-cinzenta que agora regressou a Portugal (não a mesma da imagem) recebeu o GPS numa operação que o PÚBLICO acompanhou parcialmente Nuno Ferreira Santos (Arquivo)
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Durante algum tempo, os cientistas portugueses que, há cerca de dois anos, colocaram um GPS naquela tarambola-cinzenta (Pluvialis squatarola) não tiveram sinais dela. Mas, na semana passada, a ave regressou ao estuário do Tejo e toda a informação contida no pequeno aparelho começou, de súbito, a ser descarregada. “Ainda falta descarregar cerca de um ano de dados”, diz o investigador José Alves. A tarambola-cizenta, presença habitual na costa portuguesa, é uma das 16 espécies de aves costeiras migratórias que viram agravada a categoria da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). “Já sabíamos que estava em declínio, mas não contava que fosse tanto...”, diz o especialista em limícolas do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar (CESAM) da Universidade de Aveiro.

Até esta última actualização, a tarambola-cinzenta estava na categoria de espécies com estatuto Pouco Preocupante, mas, após a verificação de que tinha sofrido um declínio global superior a 30%, saltou uma categoria e é agora classificada como Vulnerável, o que significa que “se considera como enfrentando um risco de extinção elevado”.

Parece um exagero, quando ainda se vêem tantos exemplares desta e de outras aves que também viram o seu estatuto agravado, mas a verdade é que a actualização da Lista Vermelha da IUCN se baseia em dados sistematizados ao longo de mais de uma década, pelo que reflecte uma tendência que não deixa margem para dúvidas. E isso deve preocupar-nos a todos.

José Alves diz que, das 16 espécies que viram a sua categoria agravada, quatro são “nossas”. Ou seja, espécies que escolhem Portugal para passar o Inverno, na sua rota migratória com o Norte da Europa. Das quatro, a tarambola-cinzenta é a que assume o agravamento mais preocupante, com as restantes três espécies — cujos declínios se situam entre os 20% e os 30% — a verem a sua categoria actualizada de Pouco Preocupante para Quase Ameaçada. Ou seja, o mesmo é dizer que deixaram de ser populações abundantes e que não suscitam preocupações para passarem a ser espécies que se considera que venham a receber “uma categoria de ameaça num futuro próximo”. São elas o pilrito-de-peito-preto (Calidris alpina), o pilrito-de-bico-comprido (Calidris ferruginea) e a rola-do-mar (Arenaria interpris).

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A aparente abundância de algumas aves torna difícil perceber que possam estar, de facto, ameaçadas Daniel Rocha (Arquivo)

“Infelizmente, já estava à espera porque temos vindo a alertar que estas populações têm vindo a diminuir, algumas de forma muita acentuada. Os nossos dados mostram essa diminuição, mas não contava com um declínio tão elevado da tarambola-cinzenta. Foi a única coisa que nos surpreendeu mais, o ter sido tão acentuado...”, diz José Alves.

60% das espécies de aves em declínio

No comunicado que dava conta das alterações sofridas pelas 16 espécies costeiras, a BirdLife International (uma rede internacional que, entre outras coisas, congrega os dados científicos que servem de base à Lista Vermelha da IUCN) deixava um alerta sobre o significado mais vasto deste declínio entre as aves: “As aves são um importante indicador do estado da natureza: estão em praticamente todo o lado, o seu comportamento e ecologia muitas vezes espelham os de outros grupos de espécies, são extremamente bem estudadas e são reactivas a mudanças ambientais. Com uma em cada oito espécies de aves ameaçada de extinção e 60% das espécies de aves em declínio globalmente, a diminuição destas populações indica que o ecossistema está em crise. Muitas aves migratórias seguem rotas específicas, as flyways, parando ao longo de vários locais para descansar e se alimentarem. Isto faz delas espécies em risco por ameaças como perda de habitat e alterações climáticas.”

Os relatórios da BirdLife International têm apontado para uma tendência sempre mais desfavorável para a preservação das aves e a estimativa, em 2022, de que 49% das espécies estariam em declínio, agravou-se agora para os 60%.

Numa reacção imediata à divulgação destes dados, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), através do seu director executivo, Rui Borralho, avisou: “Portugal, como país de que muitas destas espécies dependem na migração, tem responsabilidade especial de fazer mais para contrariar estas tendências. Estes dados são mais uma prova de que é urgente proteger as aves costeiras, e em Portugal isso passa por proteger e restaurar zonas cruciais como os estuários do Tejo e do Sado, e não continuar a autorizar desenvolvimentos turístico-hoteleiros megalómanos.”

Hany Alonso, técnico da SPEA que coordena o Censo de Aves Comuns, insiste que esta é uma questão essencial. “Uma das coisas que podemos fazer, e temos feito, mas nem sempre bem, é proteger as áreas que são importantes para estas espécies. Por cá, essas áreas tendem a estar pressionadas pelo homem. Basta ver que os estuários do Tejo e do Sado estão na periferia de grandes centros urbanos, com tudo o que isso significa em termos de expansão imobiliária e da pressão que resulta da expansão das cidades e das infra-estruturas que as apoiam”, diz.

Junte-se a actividade económica que também ocorre — não só a agrícola, mas também o desenvolvimento industrial e o aumento da rede eléctrica, com a colocação de fios aéreos que são a principal causa de morte das aves no país — e a pressão das mais diferentes acções realizadas pelos moradores e visitantes, e a vida não está facilitada para estas espécies, com as consequências que agora se conhecem.

Multiplicidade de factores

Embora em alguns casos não seja ainda claro o que está a levar ao declínio de determinada espécie, há factores transversais que parecem afectar mais ou menos praticamente todas elas — a perda ou degradação de habitat; distúrbios (causados pela actividade humana, seja ela qual for); caça ou alterações climáticas. E o facto de serem espécies migratórias, que necessitam de vários territórios e regiões do mundo para continuarem a prosperar, dificulta tudo ainda mais. Porque mesmo que até sejam alvo de um programa de conservação num determinado país, por exemplo, isso de pouco vai servir se outra região que utiliza durante a migração não lhe oferecer as condições de que necessita para sobreviver.

O trabalho, sublinha Hany Alonso, tem de ser feito em simultâneo e em várias frentes. “É preciso proteger as áreas que utilizam, perceber que ameaças afectam as espécies e tentar minimizar os seus impactos. Em casos específicos, podem ser precisos projectos de conservação que ajudem a recuperar. As aves lidam com múltiplas ameaças, o que faz com que a sua conservação seja bastante complicada”, admite.

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Rola-do-mar PATRÍCIA CARVALHO

José Alves sublinha esse aspecto, com um exemplo: “O pilrito-de-peito-preto, por exemplo, tem beneficiado de investimentos de conservação [noutros países], mas eles precisam de vários locais em bom estado de conservação. Basta que uma dessas zonas esteja mal para entrarem em declínio e é isso a que temos estado a assistir, em vários casos.”

A informação desta actualização da Lista Vermelha da IUCN foi acompanhada de um pedido para que os decisores políticos ajam, de forma definitiva, em defesa da preservação da biodiversidade. Esperavam-se passos cruciais durante a Cimeira da Biodiversidade das Nações Unidas, que terminou no início deste mês, em Cali, na Colômbia, mas tal não aconteceu. “Não há boas notícias. É uma chatice, mas não há. Há acordos positivos, mas as grandes decisões não foram tomadas, não há um compromisso eficaz e com plano de acção para reduzir a perda da biodiversidade”, diz José Alves.

E nem sempre é fácil fazer a sociedade entender que algo de grave está a acontecer, sobretudo quando se olha à volta e ainda se vêem tantos pilritos ou rolas-do-mar a povoar as praias portuguesas, por esta altura. Ou quando se questiona se é mesmo assim tão importante que haja menos biodiversidade no planeta. Mas, quanto a isto, não pode haver dúvidas, como sublinha Hany Alonso: “Tudo o que fazemos tem impacto e, se quisermos um planeta saudável, temos mesmo de nos preocupar com a biodiversidade. E não basta fazer uma limpeza de praia ou preocuparmo-nos por a temperatura estar a subir. Isso não adianta se, em simultâneo, não protegermos a biodiversidade. Porque o que existe, só existe porque há biodiversidade. As aves, aqui, funcionam como um indicador, porque o que lhes está a acontecer, acontece de certeza a outros grupos.”