Lince-ibérico deu espectáculo na escola, contando as maldades que lhe fazem

Quando falta o coelho-bravo e a “barriga fica colada às costelas”, avisa, as galinhas que se cuidem. O ICNF, à semelhança do que existe para o lobo, prepara legislação para indemnizar os lesados.

Foto
Ouça este artigo
00:00
04:31

O lince-ibérico foi à escola “ler uma carta”, chamando a atenção para a situação em que vive. “Nos últimos anos tenho sentido muito medo, receio e desconfiança”. O animal, de olhar penetrante, surgiu em forma de marioneta, exibindo os seus bigodes de gato assanhado. “A minha mãe contou-me que há homens que usam venenos, e outros que nos querem caçar e matar”, relata. Com esta história, narrada por Jeannine Trévidic, da Associação Picada Cultural, os alunos da Escola Básica de Martim Longo (Alcoutim) reviveram um outro conto em que participaram: A Aventura do Lince Leonardo, nascido na serra algarvia.

Os sítios onde o animal gosta de viver, narrou Jeannine, “têm de ter zonas de pastagem, que parecem estar a desaparecer”. A mensagem continuava em tom de lamento, destacando a perda da biodiversidade. “Tenho andado com uma fome… fico com a barriga colada às costelas quando estou mais de uma semana sem avistar um coelho-bravo...” Na falta da sua ementa predilecta, explicou a seguir o biólogo João Alves, do Instituto Nacional de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), o animal ataca a capoeira.

Uma dessas situações, referiu, foi detectada na aldeia de Corte Sines, a norte de Mértola. “A Paprika habituou-se a ir às galinhas”, contou. Na sequência desse caso, adiantou João Alves, está a ser preparada uma norma legislativa para ressarcir os criadores lesados: “Vão ter direito a uma indemnização, à semelhança da que existe com o lobo”. A proposta, disse, encontra-se ao nível do conselho directivo do ICNF para aprovação. Mas as capoeiras não são apenas a despensa do lince. “Raposas, ginetas e saca-rabos também comem galinhas...”, lembrou.

Reaprender a conviver com o lince

O felino chegou ao Nordeste algarvio há cerca de cinco anos, vindo de Mértola. Parece ter gostado do sítio e depressa mudou o estatuto de turista acidental para residente permanente. “A minha mãe viu um lince na estrada, de manhã, quando ia para o trabalho”, disse a Benedita, de seis anos, deixando uma confidência: “Quando for grande, quero ser bióloga, para saber mais coisas sobre os linces...”

Nesta escola, no ano passado, os alunos ilustraram um conto – escrito por Ana Xavier, do ICNF –, narrando um episódio da vida do lince Leonardo. O animal, lê-se, vive uma aventura quando se dá conta de que a mãe tinha saído para caçar e não regressa. Atira-se pelos montes e vales, desesperado, e, com ajuda de uma raposa, acaba por salvar a progenitora, que comera um rato envenenado.

A população deste felino, inventariou o ICNF, já conta com duas dezenas de animais, a deambular entre Alcoutim e Castro Marim. “As pessoas tinham perdido o hábito de conviver com o lince”, diz João Alves, referindo que este desaparecera no final do século passado. De acordo com o último censo do lince-ibérico, em 2023, já se superou a barreira dos 2000 exemplares (1730 em Espanha, 291 em Portugal).

Mas a escassez de coelho-bravo, explicou João Alves, está a pôr em causa a multiplicação da espécie, esperando-se que em 2035-40 atinja o estado de “não-preocupante”. A falta de alimento, principalmente o coelho-bravo, tem sido uma das causas para o seu declínio. Através do projecto LIFE, referiu o biólogo, está previsto o repovoamento da espécie cinegética, tendo, para o efeito, destinada uma verba de 200 mil euros.

Simão, um aluno de 11 anos, não se mostrou surpreendido com o que viu e ouviu: “Eu já vi um lince, fui a uma largada e soltei um lince que estava em cativeiro.” De início, refere, o animal até parecia estranhar ver alguém que lhe abria a porta à liberdade. “Não queria ir embora, queria estar ao pé de nós, tivemos de o enxotar para ir para seu habitat natural.”

O espectáculo termina com uma mensagem em jeito de apresentação num primeiro dia de aulas: “Sou o maior felino de Portugal, sou bonito e faço lembrar um gato bem-comportado.” A descrição, tipo bilhete-postal, prossegue com as características anatómicas_ “Sou conhecido por ter uma cauda curta, pintas negras por todo o corpo e muitos pêlos nas orelhas em forma de pincel. Tenho pêlos em cada lado das faces. Sou silencioso, alguns chamam-me gato-fantasma.” As despedidas, acompanhadas de palmas e sorrisos das crianças, tiveram o colorido de uma festa de Natal. “Se algum dia nos cruzarmos, admirem a minha beleza. Tirem muitas fotografias. É que eu sou bonito, sou muito mais bonito do que vocês…" Soltaram-se as gargalhadas. Termina, assinando: “Do vosso querido vizinho, o lince-ibérico."

Sugerir correcção
Comentar