Floresta de canas invade ribeiras do Algarve e aumenta risco de inundações

Faro e outras cidades, com leitos de cheia entupidos pelo canavial, terão dificuldades para enfrentar uma enxurrada. Agência do Ambiente usou glifosato na ribeira de Aljezur para travar invasoras.

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Eduardo Pinto
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As linhas de água, deixadas ao abandono pelos proprietários dos terrenos e pelos poderes públicos, transformaram-se em florestas de espécies invasoras – silvados e canavial. Deste modo, parece estar escrito no território o que virá a seguir aos incêndios – inundações e culturas destruídas. Dos levantamentos efectuados pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), foram identificados cerca de 225 km de canavial (Arundo donax). Não é difícil antever as possíveis consequências: Faro, Quarteira ou Albufeira enfrentam o risco de assistir ao drama de ver a água a entrar pelas habitações.

As enxurradas ocorridas no passado não serviram de exemplo, o sol depressa varreu preocupações de ordenamento do espaço, e a edificação em linhas de água – legal ou ilegalmente continua a multiplicar-se. A chuva é cada vez mais rara, mas, quando acontece no Algarve, por vezes, surge de forma torrencial. Agora, o Inverno está à porta e as ribeiras, pela falta de manutenção e limpeza, encontram-se num estado que não permite à rede hidrográfica funcionar como válvula de escape e teme-se um cenário parecido com o de Valência.

As linhas de água, entupidas pelo coberto vegetal ou ocupadas por edifícios, mostram as vulnerabilidades de uma região projectada para o turismo e pouco mais. A curto prazo, a APA não tem projectos para corrigir ou mitigar estes problemas, que podem potenciar as cheias.

A ribeira de Quarteira é apenas um dos exemplos, entre vários, que se podem encontrar do litoral ao interior. Logo à saída do limite do concelho de Loulé para Albufeira, na ponte do Barão, um denso canavial com mais de cinco metros de altura, forma uma espécie de túnel vegetal. A ribeira está seca. Numa eventual enxurrada, será fácil formar-se uma inundação que se agiganta até ao mar. Nessas circunstâncias, campos de golfe, aldeamentos turísticos e terras de cultura não serão poupados às cheias.

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As ribeiras, pela falta de manutenção e limpeza, encontram-se num estado que não permite à rede hidrográfica funcionar como válvula de escape Eduardo Pinto

Vegetação não se domestica

Segundo a Lei da Água (n.º58/2005), a limpeza das ribeiras é da responsabilidade dos proprietários dos terrenos. No meio urbano, a obrigação compete às câmaras municipais e à APA. Os particulares não cumprem, a administração pública também não dá o exemplo.

“Mas, quando se quer intervir, criam-se entraves de toda a ordem”, lamenta o vereador do Ambiente da Câmara de Aljezur, António Carvalho. A autarquia, em parceria com a APA, foi impedida, pelo tribunal, de prosseguir com a execução do Projecto de Valorização e Requalificação da Ribeira de Aljezur. Os trabalhos foram travados há cerca de dois anos, por força de uma iniciativa judicial (providência cautelar), e ficaram aquém do resultado esperado. A acção foi interposta pela Associação de Defesa do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina Arriba.

A sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF), a 1 de Julho de 2022, colocou em causa a aplicação de um herbicida, contendo glifosato (tipo “píton verde”), para combater o canavial que bloqueava a ribeira. Os ambientalistas alegaram que o composto químico está associado a casos de cancro.

Por seu turno, a autarquia defendeu-se com o facto de a operação, com o parecer favorável da APA, se encontrar suportada por estudos técnicos e argumentou que fazia parte do “manual de boas práticas”. O tribunal, perante as dúvidas suscitadas, entendeu que a obra só poderia prosseguir depois de uma “avaliação conclusiva” a efectuar pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), tendo em conta os “previsíveis impactes ambientais, designadamente os susceptíveis de afectar a conservação de habitats e de espécies de flora e fauna”. Cumpriu-se a sentença, mas o caso não está encerrado.

O processo evoluiu para uma acção principal. “O resultado está à vista: renasceu uma floresta de canas”, diz António Carvalho, lembrando que estava previsto fazer três aplicações de herbicida, e a operação ficou-se “apenas por uma”.

Questionada pelo PÚBLICO, a APA admite o uso de “maquinaria “mais pesada”, como aconteceu na ribeira de Aljezur, e, eventualmente, o apoio e controlo químico (herbicida), como é o caso do glifosato, quando ocorrem “áreas extensas de canavial denso”. De resto, informa, o tipo de intervenção aplicada “está identificado nos diversos manuais de boa práticas e de procedimentos para requalificação de linhas de água”. Contudo, salvaguarda, “a aplicação de herbicida será sempre sujeita à adequação da sua utilização com proporcionalidade”.

Das acções previstas para os próximos anos, adianta a agência, encontra-se em fase de “desenvolvimento de projecto” a reabilitação e valorização de troços da ribeira de Alcantarilha, Odeleite e Beliche, numa extensão total de 14 quilómetros. O investimento, enquadrado no Programa Regional do Algarve 2030, representa uma verba estimada entre os 4 e os 7 milhões de euros.

APA admite o uso de “maquinaria “mais pesada” e, eventualmente, o controlo químico (herbicida) quando ocorrem “áreas extensas de canavial denso” Eduardo Pinto
APA admite o uso de “maquinaria “mais pesada” e, eventualmente, o controlo químico (herbicida) quando ocorrem “áreas extensas de canavial denso” Eduardo Pinto
APA admite o uso de “maquinaria “mais pesada” e, eventualmente, o controlo químico (herbicida) quando ocorrem “áreas extensas de canavial denso” Eduardo Pinto
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APA admite o uso de “maquinaria “mais pesada” e, eventualmente, o controlo químico (herbicida) quando ocorrem “áreas extensas de canavial denso” Eduardo Pinto

O uso de herbicidas no combate ao canavial divide opiniões. “Por princípio, não usamos glifosato”, diz Afonso do Ó, da Associação Natureza/WWF/Portugal, embora reconheça que a cana é muito competitiva na disputa pela água. “Há técnicos municipais, com quem trabalhamos, que nos dizem que se não usarmos herbicida, corta-se a cana num ano e ela rebenta, em força, dois anos depois”.

Porém, o especialista em água defende que “não se deve usar glifosato para domesticar a vegetação. As invasoras já fazem parte do nosso ecossistema”, sublinha. Mas, por outro lado, admite que é necessário intervir na paisagem “para que as plantas autóctones possam sobreviver”. Um dos casos, exemplifica, é a ribeira da Benémola (nascente do aquífero Querença-Silves). “O canavial tomou conta de quase tudo, mas não é preciso usar glifosato. Há outras herbicidas mais suaves, fáceis de absorver pela natureza e de se diluírem.” Em Aljezur, o vereador António Carvalho contrapõe: “Interrompemos o uso do glifosato e freixieiros, salgueiros e amieiros, plantados para reabilitar a galeria ripícola, não sobreviveram. A cana abafou tudo em seu redor”.

Entulho chega a Vilamoura

Depois de observar a ribeira do Rio Seco junto à variante de Faro para Olhão, a professora da Universidade do Algarve (UAlg), Amélia Santos, destaca um outro aspecto do ambiente às portas da cidade: “Uma coisa que eu acho surpreendente, além do canavial, é a quantidade de lixo que é atirado para as linhas de água.” Garrafas de plástico, vidro e outros objectos estão ali mesmo à beira da estrada.

No caso de chuvas torrenciais, como sucedeu em 1989, diz, “as inundações serão uma inevitabilidade” Eduardo Pinto
No caso de chuvas torrenciais, como sucedeu em 1989, diz, “as inundações serão uma inevitabilidade” Eduardo Pinto
No caso de chuvas torrenciais, como sucedeu em 1989, diz, “as inundações serão uma inevitabilidade” Eduardo Pinto
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No caso de chuvas torrenciais, como sucedeu em 1989, diz, “as inundações serão uma inevitabilidade” Eduardo Pinto

“Vou às aldeias do norte e não vejo isto”, comenta a arquitecta paisagista, coordenadora de um projecto de requalificação desta ribeira, em 2012, no âmbito de um concurso do programa Polis da ria Formosa. Uma intervenção radical, reconhece, levada a cabo com recurso ao uso de herbicidas (glifosato) e maquinaria pesada. “Resultou, mas, por falta de limpeza e manutenção nos anos seguintes, está agora num estado lamentável”, comenta.

No caso de chuvas torrenciais, como sucedeu em 1989, diz, “as inundações serão uma inevitabilidade”. De lá para cá, a situação só piorou. As linhas de água foram ocupadas com prédios e o que resta do sistema capilar da hidrografia está entulhado por vegetação. Nessas circunstâncias, ali próximo, está a ribeira da Goldra. Nos últimos três anos, informou a APA, foram intervencionados cerca de 3,5 quilómetros de linhas de água no concelho de Olhão (ribeiras do Tronco, de Marim e Bela Mandil).

Quando se caminha para o interior, a situação de abandono ainda é mais visível. “Temo que surjam cheias como a que assistimos em 2019”, avisa o presidente da Junta de Freguesia de Alte (Loulé), António Martins, lembrado o que se passou no sítio das Águas Frias. “As pessoas não podiam sair de casa. Felizmente, os antigos tinham alguma sabedoria – construíram as casas nos pontos mais altos. Quando a ribeira transbordou só afectou uma habitação.” Em Albufeira, onde existia uma ribeira foi construída uma avenida. Resultado: em 2015, a água chegou ao primeiro andar das casas da baixa da cidade.

Quando aparecem, as verbas para a manutenção da rede hidrográfica esgotam-se antes de aqui chegar”, queixa-se o autarca. A manutenção, recorda, “tem de ser permanente: limpa-se 20 quilos de canavial, deixa-se uma raiz de 20 centímetros, no ano seguinte temos 40 quilos”, sublinha. No ano passado, relata ainda, a junta de freguesia lançou um concurso público para a limpeza das ribeiras. “Exigimos à empresa que removesse os pedaços de canas do leito de cheia, porque isso nem sempre acontece.” Assim que chove mais abundantemente, se o caderno de encargos não é respeitado, prossegue, “o entulho vai por aí abaixo até chegar a Vilamoura”. Precavendo-se, a empresa que gere a marina instalou uma rede na ribeira (junto à praia da Falésia), para evitar que lixo ande a flutuar ao lado dos iates.