As linhas de água, deixadas ao abandono pelos proprietários dos terrenos e pelos poderes públicos, transformaram-se em florestas de espécies invasoras – silvados e canavial. Deste modo, parece estar escrito no território o que virá a seguir aos incêndios – inundações e culturas destruídas. Dos levantamentos efectuados pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA), foram identificados cerca de 225 km de canavial (Arundo donax). Não é difícil antever as possíveis consequências: Faro, Quarteira ou Albufeira enfrentam o risco de assistir ao drama de ver a água a entrar pelas habitações.
As enxurradas ocorridas no passado não serviram de exemplo, o sol depressa varreu preocupações de ordenamento do espaço, e a edificação em linhas de água – legal ou ilegalmente – continua a multiplicar-se. A chuva é cada vez mais rara, mas, quando acontece no Algarve, por vezes, surge de forma torrencial. Agora, o Inverno está à porta e as ribeiras, pela falta de manutenção e limpeza, encontram-se num estado que não permite à rede hidrográfica funcionar como válvula de escape e teme-se um cenário parecido com o de Valência.
As linhas de água, entupidas pelo coberto vegetal ou ocupadas por edifícios, mostram as vulnerabilidades de uma região projectada para o turismo e pouco mais. A curto prazo, a APA não tem projectos para corrigir ou mitigar estes problemas, que podem potenciar as cheias.
A ribeira de Quarteira é apenas um dos exemplos, entre vários, que se podem encontrar do litoral ao interior. Logo à saída do limite do concelho de Loulé para Albufeira, na ponte do Barão, um denso canavial com mais de cinco metros de altura, forma uma espécie de túnel vegetal. A ribeira está seca. Numa eventual enxurrada, será fácil formar-se uma inundação que se agiganta até ao mar. Nessas circunstâncias, campos de golfe, aldeamentos turísticos e terras de cultura não serão poupados às cheias.
Vegetação não se domestica
Segundo a Lei da Água (n.º58/2005), a limpeza das ribeiras é da responsabilidade dos proprietários dos terrenos. No meio urbano, a obrigação compete às câmaras municipais e à APA. Os particulares não cumprem, a administração pública também não dá o exemplo.
“Mas, quando se quer intervir, criam-se entraves de toda a ordem”, lamenta o vereador do Ambiente da Câmara de Aljezur, António Carvalho. A autarquia, em parceria com a APA, foi impedida, pelo tribunal, de prosseguir com a execução do Projecto de Valorização e Requalificação da Ribeira de Aljezur. Os trabalhos foram travados há cerca de dois anos, por força de uma iniciativa judicial (providência cautelar), e ficaram aquém do resultado esperado. A acção foi interposta pela Associação de Defesa do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina – Arriba.
A sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé (TAF), a 1 de Julho de 2022, colocou em causa a aplicação de um herbicida, contendo glifosato (tipo “píton verde”), para combater o canavial que bloqueava a ribeira. Os ambientalistas alegaram que o composto químico está associado a casos de cancro.
Por seu turno, a autarquia defendeu-se com o facto de a operação, com o parecer favorável da APA, se encontrar suportada por estudos técnicos e argumentou que fazia parte do “manual de boas práticas”. O tribunal, perante as dúvidas suscitadas, entendeu que a obra só poderia prosseguir depois de uma “avaliação conclusiva” a efectuar pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), tendo em conta os “previsíveis impactes ambientais, designadamente os susceptíveis de afectar a conservação de habitats e de espécies de flora e fauna”. Cumpriu-se a sentença, mas o caso não está encerrado.
O processo evoluiu para uma acção principal. “O resultado está à vista: renasceu uma floresta de canas”, diz António Carvalho, lembrando que estava previsto fazer três aplicações de herbicida, e a operação ficou-se “apenas por uma”.
Questionada pelo PÚBLICO, a APA admite o uso de “maquinaria “mais pesada”, como aconteceu na ribeira de Aljezur, e, eventualmente, o apoio e controlo químico (herbicida), como é o caso do glifosato, quando ocorrem “áreas extensas de canavial denso”. De resto, informa, o tipo de intervenção aplicada “está identificado nos diversos manuais de boa práticas e de procedimentos para requalificação de linhas de água”. Contudo, salvaguarda, “a aplicação de herbicida será sempre sujeita à adequação da sua utilização com proporcionalidade”.
Das acções previstas para os próximos anos, adianta a agência, encontra-se em fase de “desenvolvimento de projecto” a reabilitação e valorização de troços da ribeira de Alcantarilha, Odeleite e Beliche, numa extensão total de 14 quilómetros. O investimento, enquadrado no Programa Regional do Algarve 2030, representa uma verba estimada entre os 4 e os 7 milhões de euros.
O uso de herbicidas no combate ao canavial divide opiniões. “Por princípio, não usamos glifosato”, diz Afonso do Ó, da Associação Natureza/WWF/Portugal, embora reconheça que a cana é muito competitiva na disputa pela água. “Há técnicos municipais, com quem trabalhamos, que nos dizem que se não usarmos herbicida, corta-se a cana num ano e ela rebenta, em força, dois anos depois”.
Porém, o especialista em água defende que “não se deve usar glifosato para domesticar a vegetação. “As invasoras já fazem parte do nosso ecossistema”, sublinha. Mas, por outro lado, admite que é necessário intervir na paisagem “para que as plantas autóctones possam sobreviver”. Um dos casos, exemplifica, é a ribeira da Benémola (nascente do aquífero Querença-Silves). “O canavial tomou conta de quase tudo, mas não é preciso usar glifosato. Há outras herbicidas mais suaves, fáceis de absorver pela natureza e de se diluírem.” Em Aljezur, o vereador António Carvalho contrapõe: “Interrompemos o uso do glifosato e freixieiros, salgueiros e amieiros, plantados para reabilitar a galeria ripícola, não sobreviveram. A cana abafou tudo em seu redor”.
Entulho chega a Vilamoura
Depois de observar a ribeira do Rio Seco junto à variante de Faro para Olhão, a professora da Universidade do Algarve (UAlg), Amélia Santos, destaca um outro aspecto do ambiente às portas da cidade: “Uma coisa que eu acho surpreendente, além do canavial, é a quantidade de lixo que é atirado para as linhas de água.” Garrafas de plástico, vidro e outros objectos estão ali mesmo à beira da estrada.
“Vou às aldeias do norte e não vejo isto”, comenta a arquitecta paisagista, coordenadora de um projecto de requalificação desta ribeira, em 2012, no âmbito de um concurso do programa Polis da ria Formosa. Uma intervenção radical, reconhece, levada a cabo com recurso ao uso de herbicidas (glifosato) e maquinaria pesada. “Resultou, mas, por falta de limpeza e manutenção nos anos seguintes, está agora num estado lamentável”, comenta.
No caso de chuvas torrenciais, como sucedeu em 1989, diz, “as inundações serão uma inevitabilidade”. De lá para cá, a situação só piorou. As linhas de água foram ocupadas com prédios e o que resta do “sistema capilar da hidrografia” está entulhado por vegetação. Nessas circunstâncias, ali próximo, está a ribeira da Goldra. Nos últimos três anos, informou a APA, foram intervencionados cerca de 3,5 quilómetros de linhas de água no concelho de Olhão (ribeiras do Tronco, de Marim e Bela Mandil).
Quando se caminha para o interior, a situação de abandono ainda é mais visível. “Temo que surjam cheias como a que assistimos em 2019”, avisa o presidente da Junta de Freguesia de Alte (Loulé), António Martins, lembrado o que se passou no sítio das Águas Frias. “As pessoas não podiam sair de casa. Felizmente, os antigos tinham alguma sabedoria – construíram as casas nos pontos mais altos. Quando a ribeira transbordou só afectou uma habitação.” Em Albufeira, onde existia uma ribeira foi construída uma avenida. Resultado: em 2015, a água chegou ao primeiro andar das casas da baixa da cidade.
Quando aparecem, as verbas para a manutenção da rede hidrográfica “esgotam-se antes de aqui chegar”, queixa-se o autarca. A manutenção, recorda, “tem de ser permanente: limpa-se 20 quilos de canavial, deixa-se uma raiz de 20 centímetros, no ano seguinte temos 40 quilos”, sublinha. No ano passado, relata ainda, a junta de freguesia lançou um concurso público para a limpeza das ribeiras. “Exigimos à empresa que removesse os pedaços de canas do leito de cheia, porque isso nem sempre acontece.” Assim que chove mais abundantemente, se o caderno de encargos não é respeitado, prossegue, “o entulho vai por aí abaixo até chegar a Vilamoura”. Precavendo-se, a empresa que gere a marina instalou uma rede na ribeira (junto à praia da Falésia), para evitar que lixo ande a flutuar ao lado dos iates.