Ontem deixei de me matar

Quando terminou a sessão, tinha vinte e três chamadas por atender da escola, outras tantas do pai do meu filho e várias mensagens Onde estás? Estou preocupado, atende.

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Ontem deixei de me matar. Não sei se foi assim que aconteceu. Naquela altura, uma névoa cobria-me parte dos pensamentos. Sei que foi o que senti. Uma vontade de voltar à vida, de encontrar alguma da alegria perdida no meio do turbilhão que me atravessara na última década. Nessa manhã, acordei na cama do seminário, como acontecia às terças e quartas, dias em que me deslocava da cidade em que vivia para ir dar aulas na universidade. Sei que despertei virada para o lado direito da cama, com vista para a parede caiada, e uma luz rompia as portadas da janela, iluminando o quarto num tom quente. Ontem deixei de me matar, a frase de Heiner Müller surgiu cristalina, sem que tivesse mão, uma imagem da força que eu precisava. Talvez tivesse reunido durante o sono a coragem suficiente para começar uma nova fase.

Nos primeiros anos como professora, os dias na universidade eram sempre extenuantes. Arremetida pela síndrome da impostora, tive de interromper algumas vezes as aulas para me socorrer da casa de banho mais próxima numa descarga física de choro ou diarreia, que era afinal a liquidificação dos meus medos. Tive de aprender a usar ansiolíticos, com moderação e apenas às terças, que me restituíam alguma da confiança perdida anos antes, quando me desintegrei como pessoa e profissional.

Sob o efeito do ansiolítico, os dias fluíam serenamente, a comunicação com os alunos tornava-se mais fácil, era até capaz de voltar a fazer piadas e de me sentir bem-sucedida. Se ao terminar as aulas experimentava a admiração e carinho dos estudantes, isso não me impedia de voltar aos mesmos sentimentos de insegurança na semana seguinte. A minha existência balançava numa constante construção e demolição executadas por mim própria.

Não sei como levei tanto tempo para adoecer de forma incapacitante. Alertada várias vezes por familiares e amigos, dado o ritmo alucinante que levava de trabalho e viagens de trabalho nos últimos anos, ignorei os sinais que o corpo me dava. Foi apenas quando a morte me tocou de perto — não a mim, mas a alguém que eu adorava profundamente — que adoeci. Tive um esgotamento nervoso e fui internada. Fui eu mesma que pedi o internamento, ciente de não estar capaz de continuar a trabalhar ou de ser mãe, depois de me ter enfiado numa matiné de cinema, um ciclo especial sobre Vittorio De Sica onde assisti deslumbrada ao Ladrões de Bicicletas, e de me ter esquecido de ir buscar o meu filho.

Quando terminou a sessão, tinha vinte e três chamadas por atender da escola, outras tantas do pai do meu filho e várias mensagens Onde estás? Estou preocupado, atende. Atordoada como nunca estive, perdi noção do dia e do ano em que estávamos, de quem eu era, e pedi, finalmente, ajuda.

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