Não foi o The Collective que esperávamos, mas foi totalmente Kim Gordon

No Capitólio, em Lisboa, esta segunda-feira, ouvimos o magnífico álbum editado este ano pela ex-Sonic Youth, domado pelo formato banda. Não foi tudo o que esperávamos, mas foi Kim Gordon.

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Kim Gordon seguiu no concerto o alinhamento de The Collective VERA MARMELO
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Não é propriamente The Collective, aquele magma electrónico saturado, pulsante, magnificamente perturbador, que chegou em Março e que nos mostrou uma Kim Gordon vital, a dialogar e a intervir no presente. Letras como vinhetas de um diário, curtas reflexões, digressões, reflexões, acusações, verve feminista, acção antimachista. Tudo construído sobre ruído industrial, noise punk e crueza trap a atirar-se à jugular dos delírios consumistas, do torpor de rede social, da frigidez das relações.

Não foi esse The Collective, sério candidato a álbum do ano, que vimos e ouvimos na noite de segunda-feira no Capitólio, em Lisboa, num concerto com a marca da Galeria Zé dos Bois, que continua a celebrar as suas três décadas de vida, data única portuguesa da digressão que aqui encerrou a sua vertente europeia (segue-se a Cidade do México, já no domingo).

Não foi The Collective, apesar de o álbum ter sido interpretado praticamente na íntegra, e isso não foi exactamente um compromisso, não é certamente uma cedência aos muitos que se deslocaram ao Capitólio de t-shirt dos Sonic Youth vestida, quiçá na expectativa de reencontrar um pouco do rock dissonante e da vertigem punk experimental dos autores de Kool thing – escolhamos uma canção a que Kim Gordon deu voz na banda desaparecida em 2011. No Capitólio, a densidade electrónica daquele álbum, mecânicas trap e reverberação noise, produzido por Justin Raisen (Lil Yachty, Charli XCX, Yves Tumor), ganhou nova existência e desdobrou-se enquanto obra de banda.

Kim Gordon, 71 anos, tocará guitarra ocasionalmente. Acima de tudo, porém, aquela voz intocada pela passagem do tempo, canto falado, canto grito contido, canto distante, como se as emoções estivessem protegidas por óculos escuros. À sua volta, a guitarrista Sarah Register, a baixista Camilla Charlesworth, que também se ocupa de sintetizadores e maquinaria electrónica, e a baterista Madi Voigt. Acima, o ecrã onde é projectada vídeo arte em aparelho de tv vintage, cenários abstractos, manipulação fotográfica, ou seja, manifestações do universo das artes visuais que, ainda antes da música, foi o primeiro veículo criativo de Kim Gordon — mas também imagens da banda em ensaio, gerando um curioso efeito de espelho.

O alinhamento do concerto, nos seus primeiros dois terços, seguiu fielmente o de The CollectiveBye bye, The candy house, I don’t miss my mind, I’m a man, Trophies, It’s dark inside, Psychedelic orgasm e por aí fora até Dream dollar —, mas não foi por isso que se tornou previsível. Não conhecíamos, afinal, estas canções assim, em tensão eléctrica, negrume industrial, noise rock tocado com fervor e convicção mas, inevitavelmente, de formas mais reconhecíveis e convencionais do que as registadas em estúdio.

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O concerto de Kim Gordon lotou o Capitólio, em Lisboa VERA MARMELO

Claro que é irresistível a exposição de uma masculinidade patética em I’m a man, Kim Gordon sátira visceral; claro que não ficamos indiferentes à marcha andróide de I don’t miss my mind, esqueleto hip hop trespassado por nebulosa de ruído que dá corpo a uma inquietação e a uma neurose muito contemporâneas – serão assim os melhores momentos do concerto. É certo, também, que a talentosa banda cresce em turbilhões eléctricos exaltantes, tal como nos consegue embalar em ondulações velvetianas. E é inegável que Kim Gordon é uma presença imponente, tão próxima e tão irremediavelmente distante, mestra do verso curto e da dramatização deadpan.

Ainda assim, na transposição da produção e do ambiente sonoro de The Collective para o formato banda, perde-se algo da sua absoluta singularidade e diminui-se o impacto provocado pelas suas convulsivas canções. Este não foi o concerto que aquele álbum nos poderia levar a imaginar. Foi o concerto de uma figura essencial das últimas quatro décadas que se rodeou de uma jovem e talentosa banda e se recusa a estagnar. Grita muito zangada e muito irónica “Airbnb, could set me free” – entrávamos no território de No Home Record, o antecessor de The Collective —, sobe a um estrado e sobressai no palco, sombra do perfil recortada no ecrã, quando chega Paprika pony.

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Kim Gordon VERA MARMELO
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Kim Gordon VERA MARMELO

Sairá de palco sob uma chuva de aplausos e regressará para um curto mas intenso encore – confessaria no final que se sentia adoentada. A aceleração punk rock de Hungry baby, “ya, ya, yah!” como palavra de ordem e grito libertador. Não foi exactamente, totalmente, o novo presente de The Collective, inquietante, ameaçador, surpreendente, mas também não foi certamente um piscar de olho nostálgico a celebradas juventudes sónicas do passado. Não foi tudo o que esperávamos, mas foi Kim Gordon. É mais do que suficiente.

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