Esgotos de Beja continuam a ser despejados nas linhas de água pluviais

Beja tem uma nova ETAR, mas esgotos vão parar às linhas de água pluviais. As alterações aos sistemas de tratamento de água para consumo humano e de águas residuais ascendem aos 15 milhões de euros.

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Câmara de Beja salienta que não se tratou de uma descarga contínua, mas de uma sequência de obstruções DR
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Câmara de Beja procedeu à descarga de esgotos de parte da cidade na rede de águas pluviais DR
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Câmara de Beja salienta que não se tratou de uma descarga contínua, mas de uma sequência de obstruções DR
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Primeiro, sente-se o cheiro a esgoto. Depois aparecem as moscas, que obrigam os que caminham ou fazem as suas corridas a pé ou de bicicleta na ciclovia que contorna a zona urbana de Beja a fechar a boca ou a utilizar as mãos como um abanico. À medida que se avança em direcção à Rua de Lisboa, uma das principais entradas de Beja, há quem aperte as narinas para superar o odor pestilento que se intensifica com a aproximação ao local onde se encontra o incómodo: um líquido castanho fedorento corre numa das linhas de águas pluviais da bacia do Roxo. É um fenómeno recorrente que também se observa na linha de águas pluviais que corre paralela à Avenida de António Sardinha, outra das principais entradas na capital baixo-alentejana.

Periodicamente, e desde que em 1993 foi instalada uma estação de tratamento de águas residuais (ETAR) a cerca de um quilómetro da malha urbana, procede-se à descarga de esgotos de parte da cidade de Beja na rede de águas pluviais.

O PÚBLICO questionou o presidente da Câmara de Beja sobre as razões que continuam a determinar frequentes descargas para a rede de águas pluviais dos esgotos de parte da cidade. Uma fonte do gabinete esclareceu que o aparecimento de águas residuais na descarga pluvial existente junto à ciclovia no parque da cidade “deveu-se à ocorrência de obstruções no colector da Rua de Lisboa, o que obrigou à limpeza do mesmo em toda a sua extensão”.

A autarquia salienta que “não se tratou de uma descarga contínua durante o período referido, mas sim de uma sequência de obstruções todas motivadas pelo uso incorrecto da rede de drenagem por parte dos utilizadores, mais especificamente a deposição e consequente acumulação de toalhetes”, frisando ainda que as obstruções de colectores com este tipo de resíduos “representam cerca de 85% das ocorrências de saneamento actualmente”.

O atribulado historial e a multa

A realidade é que a concepção da ETAR instalada em 1993 era baseada num sistema lagunar que, rapidamente, se revelou obsoleta. A depuração das águas residuais era deficiente e contribuiu, sobretudo em anos de seca intensa, para o aparecimento de cianobactérias, que obrigaram, por duas vezes, à captura de mais de uma centena de toneladas de peixe doente ou morto.

Recuando no tempo, a análise inserida no Plano de Ordenamento da Albufeira do Roxo salientava os problemas que identificavam a má qualidade da água, nomeadamente “elevadas cargas orgânicas alguns problemas microbiológicos e os blooms de cianobactérias, que dificultavam a aptidão para alguns dos usos primários”. Anualmente, eram escoados para a albufeira do Roxo cerca de dois milhões de litros de efluente doméstico.

Com efeito, a água bruta concentrada na Barragem do Roxo, a partir da qual se abastecia o consumo humano de Beja e Aljustrel, criava um problema sério no seu processo de tratamento. O Estudo de Impacte Ambiental elaborado pela Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas do Alqueva (EDIA) para a instalação dos Blocos de Rega de Beringel-Beja destacava as precárias condições em que se encontrava esta reserva de água. “Para ela drenam, designadamente, os esgotos tratados da cidade de Beja, alguns efluentes de indústrias, bem como escorrências dos campos agrícolas e dos resíduos produzidos pelas numerosas cabeças de gado” que pastoreiam a montante da albufeira do Roxo.

Em Setembro de 2010, o PÚBLICO anunciava a decisão da empresa Águas Públicas do Alentejo, SA (AgdA), do Grupo Águas de Portugal, SGPS, SA (AdP), de encerrar a estação de tratamento, por apresentar “incumprimentos sistemáticos no que se refere às normas de descarga, muito em particular na remoção de azoto e fósforo”. O equipamento tinha um “desempenho insuficiente” e o esgoto tratado na ETAR de Beja “não cumpria as normas necessárias do ponto de vista químico”, concluía, naquele ano, a AdP.

O Tribunal de Justiça da União Europeia, alertado, em 2016, para os graves problemas ambientais identificados no deficiente tratamento das águas residuais em várias ETAR na bacia do Sado, com destaque para a de Beja, multou Portugal em três milhões de euros, por “incumprimento das obrigações que lhe incumbem por força da Directiva 91/271/CEE”.

A sanção comunitária impôs “a necessidade de proceder à construção” de uma nova infra-estrutura de tratamento. O novo equipamento custou mais de 5 milhões de euros e começou a operar em 2019 para depurar diariamente cerca de 5 mil metros cúbicos de águas residuais, ou seja: todos os esgotos produzidos pela população de Beja.

Ultrapassados valores de referência e detectado glifosato

Dois anos depois, entrou em funcionamento a nova estação de tratamento de água (ETA), que passou a receber água de Alqueva e implicou um investimento de 7,5 milhões de euros. A ETA que capta água na albufeira do Roxo recebeu uma profunda remodelação para continuar a abastecer cerca de 14.000 habitantes, distribuídos por diversas localidades dos concelhos de Aljustrel, Odemira, Santiago do Cacém e Grândola.

A “reabilitação de uma série de órgãos e de equipamentos que se encontravam obsoletos representou um investimento de cerca de 3,9 milhões de euros”, adiantou ao PÚBLICO a AgdA. Esta entidade, questionada sobre o lançamento de esgotos não tratados na rede de águas pluviais, procedimento que decorreu ao longo de cerca de um mês, alegou “não ter conhecimento da situação”.

Confrontada com eventuais consequências que possam vir a ser causados na qualidade da água bruta do Roxo, devido às descargas de esgotos não tratados na bacia do Roxo, esta entidade explicou: “[Com a interligação da albufeira ao sistema de Alqueva], conjugada com menos escorrências naturais em resultado da redução da precipitação, não temos verificado a ocorrência de episódios com impacto significativo na qualidade da água.”

No entanto, o Boletim de Monitorização Ambiental do Aproveitamento Hidroagrícola Roxo-Sado, editado pelo Departamento de Ambiente e Ordenamento do Território (DAOT) da EDIA e relativo ao ano de 2023, observa: “Os parâmetros [da qualidade da água bruta na bacia do Roxo] excederam o valor de referência no decorrer das campanhas de amostragem realizadas em 2023. Foram ultrapassados os valores de referência para azoto e fósforo total, nitratos, para condutividade e cloretos o que sugere acumulação de sais na água.”

As campanhas de amostragem revelam ainda a utilização de herbicidas de amplo espectro empregues em várias culturas. “O princípio activo detectado foi o glifosato, tendo sido também detectada a presença do principal metabolito do glifosato AMPA.” O Boletim de Monitorização Ambiental indica ainda a “aplicação excessiva de herbicidas, o que pode representar riscos para os ecossistemas aquáticos e potenciais preocupações para a saúde humana”. Para minimizar os impactos ambientais “e garantir a segurança dos seres humanos e dos ecossistemas aquáticos”, o documento sublinha a “necessidade de correcção de procedimentos e o carácter imperativo da adopção de boas práticas agro-ambientais".

A degradação da qualidade da água bruta requer, como solução para garantir a potabilidade para o consumo humano, a necessidade de recorrer ao acréscimo da dosagem de reagentes para evitar a alteração das características organolépticas da água.