“Onde há mina, não há castanha.” População inquieta com pedidos de prospecção em Montesinho
Famílias receiam que eventual prospecção mineira se converta em exploração e ameace equilíbrio natural e económico no Parque Natural de Montesinho e nas zonas classificadas da serra da Nogueira.
A família da bióloga Sara Riso ainda estava em mudanças para a casa acabada de construir na aldeia de Tuizelo, em Vinhais, quando lhes “aparece este bombom”. Poderia estar a referir-se ao bebé que carrega, aos quase oito meses de gestação, mas o “bombom” de que nos fala foi uma consulta pública que há cerca de um mês mudou os seus dias: um pedido de atribuição de direitos de prospecção e pesquisa de minerais no concelho de Vinhais que abrange a área protegida do Parque Natural de Montesinho.
Sara e o companheiro vivem da criação de ovelhas de leite em produção biológica, mas também da apanha da castanha longal, uma variedade característica da região, de onde vem dois terços da castanha nacional. Olhando pela janela da sala, Sara vai apontando para alguns lugares à volta: o estábulo onde guarda as suas ovelhas a algumas dezenas de metros, uma casa de turismo rural mais distante (“ali atrás da cerejeira”), a linha de lameiros onde pastoreia o gado, os soutos para lá dessa linha. “Descobrimos metade da aldeia dentro do polígono da prospecção”, descreve.
A par de outras quatro freguesias do concelho de Vinhais, a freguesia de Tuizelo, com oito aldeias e menos de 300 habitantes, está abrangida pelo projecto “Revelhe” (assim baptizado em nome da localização da antiga mina da Jariça), onde a empresa GMR Consultores pediu à Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) autorização para prospectar depósitos minerais de ouro, prata, cobre, chumbo, zinco e minerais associados.
“Vim aqui parar, porque sempre achei que o Parque Natural de Montesinho um sítio muito especial”, conta Sara, natural de Lisboa, que aqui vive há 15 anos. “Há aqui um equilíbrio muito interessante entre a fauna e os habitats”, descreve, frisando que tem havido avistamentos de lobos na zona, mas “nunca houve ataques” a animais domésticos.
Os pedidos de prospecção e pesquisa para os concelhos de Vinhais e Bragança trouxeram inquietação às populações e preocupação às associações ambientalistas, tendo em conta que o “Revelhe” abrange a área protegida do Parque Natural de Montesinho e “Valongo 2” – 105km2 para prospectar depósitos minerais de níquel, cobalto, cobre e platinoides – inclui duas zonas classificadas da Rede Natura 2000, abrangendo uma fatia da serra da Nogueira.
“Onde há mina, não há jovens casais”
Os projectos, que se encontram à espera de decisão da DGEG depois da fase de consulta pública, foram apresentados pela empresa liderada pelos engenheiros Adriano Barros, já conhecido da região, e o filho João Barros, que esteve envolvido no projecto da Savannah na mina de lítio no Barroso (e acabou afastado da empresa durante o furacão da Operação Influencer). Na calha estará ainda pelo menos mais um pedido para região, na zona de Mofreita, noticia o Mensageiro de Bragança.
Nas reuniões com a população, a GMR Consultores insiste que “não vem instalar minas”, apenas fazer alguns buracos para mapear os recursos. Aliás, podem mesmo dar uma ajuda à população: tratam da limpeza dos caminhos para as máquinas passarem e, se aparecer água durante alguma das perfurações, até podem ajudar a licenciar o poço.
Mas Sara não se deixa convencer. Ao lado de outros residentes preocupados, muitos dos quais ligados ao movimento cívico Uivo (criado há alguns anos para defender “uma reserva da biosfera Meseta Ibérica livre de minas”), tem marcado presença assídua nessas reuniões, em que a participação da população em geral tem sido parca.
Apesar de se tratar apenas de um pedido de prospecção, os seus olhos já estão na caixa de Pandora que se poderá abrir, caso a pesquisa se concretize e se encontrem minerais em quantidade. A sua formação como bióloga diz-lhe que a extracção mineira, mesmo que não seja feita a céu aberto, terá um impacto profundo no ecossistema do Parque Natural de Montesinho.
E este não é apenas mais um caso de conflito entre natureza e economia, ou uma mera resistência “not in my back yard” (no meu quintal, não). Está em causa a estratégia de desenvolvimento da região. “Onde há mina, não há um progresso sustentado na natureza, que é o que se deve fazer no interior de uma área protegida”, sublinha Sara. E acrescenta: “Estamos num parque natural, um projecto de exploração mineira é totalmente incompatível com o que tentamos praticar aqui.” E, numa nota pessoal que é também política: “Onde há mina, não há jovens casais que se vêm fixar no interior.”
Biodiversidade
Preocupa-a ainda que o impacto da mineração, mesmo em fase de prospecção, chegue aos recursos hídricos da região e o problema acabe por desaguar nos rios Rabaçal e Tuela. Aliás, o parecer da Agência Portuguesa do Ambiente (APA) descreve essa “rede hidrográfica bastante densificada” e reforça que “outras intervenções que possam vir a incidir sobre o território (…) não podem pô em causa a qualidade das águas superficiais e subterrâneas”.
“Queria mostrar-vos uma coisa que encontrei ontem quando vim cá”, diz-nos. Na praia fluvial de Ponte Frades, já ligeiramente fora do polígono do projecto de prospecção, Sara Riso mostra-nos a concha de um mexilhão-de-rio (Margaritifera margaritifera), uma espécie criticamente ameaçada que pode ser encontrada apenas em rios a norte da bacia do Douro.
Estes bivalves, capazes de filtrar até 50 litros de água por dia, podem viver até 140 anos. “São os dinossauros aqui dos nossos rios”, brinca a bióloga. Mas só sobreviverão se se mantiver a “cadeia muito complexa” de biodiversidade presente nestes rios. “Sem truta não há mexilhão de rio. Sem boas condições de rio não há truta”, vai enumerando. “Na eventualidade da contaminação das linhas de água, podemos perder uma espécie-chave dos nossos ecossistemas.”
Medo do futuro
Seguimos viagem para oeste, rumo às freguesias abrangidas pelo projecto de prospecção “Valongo 2”, que inclui áreas classificadas da rede Natura 2000 na serra da Nogueira, em Vinhais e Bragança. As cores de Outono vibram nas folhas das árvores; no chão, espreitam por todo o lado as tradicionais castanhas da região.
As propriedades de Henrique do Vale e Claire Camus, espalhadas por quatro freguesias, estão “no olho do furacão”. “Tanto no projecto agrícola como no agro-turismo estamos dentro desse polígono”, explica Henrique, cineasta convertido em empreendedor rural, referindo-se à área de prospecção proposta, com 105 quilómetros quadrados.
Na aldeia de Nunes, onde têm uma plantação de oliveiras (por esta altura já carregadas de azeitonas), a propriedade foi comprada de olho na casa principal – “a nossa pequena ruína”, brinca Claire –, que esperavam recuperar para um pequeno negócio de agro-turismo. O plano foi abalroado pelo projecto de prospecção mineira, que lança uma sombra de incerteza sobre o futuro do turismo rural na região.
“O que estamos a ouvir? Nada, é o calmo. Mudei de vida para isso, para cuidar dos meus filhos a brincar no chão, com a natureza”, comenta Claire Camus, com o seu sotaque marcadamente francês. “Vai mudar tudo, a nossa vida de natureza. Não faz sentido morar perto de uma mina e ter barulho, poeira… e ter medo do futuro. A primeira coisa que pensei foi: ‘Vou parar tudo, temos de pensar noutro sítio para morar.’”
Que estratégia para o interior?
Henrique e Claire conheceram-se em Paris, viveram em Lisboa e acabaram por se mudar durante a pandemia para a região transmontana, terra de origem da família de Henrique, onde se instalaram com os três filhos na freguesia de Vila Boa de Ousilhão e abraçaram um projecto agrícola.
Tal como a família de Sara, são mais um retrato da estratégia que tem sido traçada para a região – a promoção do turismo de natureza e a fixação de jovens casais –, sobejamente divulgada pela Comunidade Intermunicipal de Terras de Trás-os-Montes. “Pensei em acabar a minha vida aqui, criar os meus filhos aqui, porque o sítio é maravilhoso para criar filhos”, reforça Claire.
É, aliás, com alguma mágoa que Henrique do Vale fala sobre a falta de diálogo das instituições locais sobre os planos de prospecção mineira. “Nós, transmontanos, somos muito fechados, demoramos muito a abrir a porta”, explica, frisando que inicialmente “cobrou muito” à sua junta de freguesia para que comunicasse com a população para resolver o assunto “antes de levar isto para fora”.
Já a nível da câmara municipal, a pressão da população acabou por ter resultado. A Câmara de Vinhais, que tinha dado um parecer favorável à prospecção com base na sua análise do PDM, acabou por ser confrontada com “pessoas apoquentadas nas aldeias” e informação insuficiente e acabou por submeter à consulta pública um parecer desfavorável, face à percepção das populações de que “não terá impacto positivo na comunidade”, descreve a bióloga Sara Riso. A Câmara de Bragança, que não emitiu parecer sobre o pedido, continua a não se pronunciar sobre o assunto.
“Onde há mina, não há castanha”
Henrique do Vale foi outro dos cidadãos que se mobilizaram para assistir às sessões de esclarecimento da GMR Consultores nas freguesias – agendadas para depois do fim das consultas públicas – e levantar questões pertinentes para cada um dos territórios. Alguns proprietários da região parecem convencidos de que terão algo a ganhar com uma eventual exploração mineira, nomeadamente com a venda dos terrenos para a empresa.
Mas essa, acredita Henrique, é uma panaceia que não se concretizará, em particular para quem de facto habita a região durante todo o ano. Para o empreendedor rural, a abertura de uma mina poderá causar uma desvalorização do património imobiliário, ao ferir a maior riqueza da região: o seu património natural.
É de Henrique a frase que já se tornou um slogan entre os membros da “resistência” à prospecção: “Onde há mina, não há castanha.” Apesar de os pedidos de prospecção estarem ainda numa fase inicial, o receio de uma futura mina está muito presente. “Não sei se prospecção e pesquisa mineira dá noutra coisa a não ser exploração mineira”, comenta o empreendedor. Em plena crise climática e da biodiversidade, questionam, que sentido faz procurar minérios numa área tão rica em recursos naturais?
“Uma jóia a preservar”
Terminamos a viagem na aldeia de Alimonde, na freguesia de Castrelos e Carrazedo, onde António Sá nos mostra a outra ponta do polígono de prospecção. António abandonou o litoral há 15 anos para se fixar em Bragança, onde faz a gestão de um alojamento local e dinamiza actividades turísticas. Faz parte do grupo de trabalho de turismo de natureza, que representa dez operadores e 19 alojamentos e participa como observador nas reuniões da comissão de co-gestão do Parque Natural de Montesinho.
“Mal soubemos da notícia, colocámo-nos logo em terreno”, relata. Depois de submeterem os seus contributos no âmbito da consulta pública, o passo seguinte tem sido abordar este caso na comissão de co-gestão do Parque Natural de Montesinho. “[É] o local certo para darmos conhecimento das nossas preocupações enquanto sector do turismo.” A comissão integra as câmaras municipais de Bragança e Vinhais, assim como representantes da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte, CCDR-N, do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, ICNF, Turismo do Norte, assim como associações representantes da exploração agrícola, pecuária e florestal.
“Nem sequer uma rede nacional de áreas protegidas funciona como escudo protector”, lamenta António Sá. Mas não são só os parques naturais: “É de extrema importância preservar a serra da Nogueira, mancha florestal de grande valor ecológico.” Para os empresários do turismo, explica, a serra é “uma âncora muito importante para o turismo de natureza”. “Isto é uma jóia a preservar.”
Uma caixa de Pandora?
Apesar do seu percurso enquanto activista ambiental, não é apenas esta a questão que o move. Caso a prospecção avance e abra caminho, no futuro, para projectos de mineração, poderão estar em causa outros valores da região. No plano do turismo gastronómico, por exemplo, comprometer os solos pode pôr em causa a certificação de produtos tradicionais cuja produção “tem muito que ver com a qualidade do ambiente”, desde as castanhas aos famosos enchidos da região. “É uma região que tem condições excepcionais, um território de excelência. Nada disto é compatível com um projecto mineiro”, reforça.
O território está também situado na Meseta Ibérica, a maior Reserva da Biosfera Transfronteiriça da Europa, abrangendo 89 municípios, uma certificação conferida pela UNESCO.
Quando veio para Bragança com a família, em 2010, António Sá abraçou um projecto turístico, mas também um novo projecto de vida. Como a sua, há “famílias que têm projectos de investimento, não só na área do turismo, mas também na agricultura”.
Lamenta que o discurso da classe política para atrair a população para o interior não seja robusto o suficiente para resistir à sedução da indústria mineira. “Enquanto cidadão, sinto-me ofendido por ver que o Estado não salvaguarda correctamente estas figuras do ordenamento do território.”
A esperança dos empresários está agora depositada no Turismo de Portugal. António Sá recorda que a entidade “esteve ao lado dos empresários do turismo”, quando, há poucos anos, deu um parecer desfavorável à mina de exploração de estanho e volfrâmio em Calabor, Espanha, junto da fronteira com o Parque Natural de Montesinho.
“Para não corrermos o risco de partirmos para a exploração mineira, o Estado deve ser capaz de travar o processo na fase de prospecção. Isto é abrir uma caixa de Pandora.”