Previdência do Brasil recusa atestado de óbito emitido em Portugal e nega pensão à viúva

Dona Maria dos Anjos tenta, há quase três anos, receber a pensão deixada pelo marido, José Raimundo Antunes, que morreu em Portugal quando visitava as filhas. Ele contribuiu por 65 anos ao INSS.

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Dona Maria dos Anjos espera há quase três anos pela pensão do marido que morreu em viagem de férias a Portugal DIVULGAÇÃO
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Dona Maria dos Anjos Antunes, 84 anos, vive um calvário há quase três anos. Desde a morte do marido, José Raimundo, o Seu Antunes, em janeiro de 2022, ela tenta receber a pensão a que tem direito, mas esbarra na burocracia do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o órgão responsável no Brasil por pagar os benefícios da Previdência Social. Simplesmente, os responsáveis pela análise dos documentos enviados por ela se recusam a aceitar o atestado de óbito de Seu Antunes emitido em Portugal. Ele morreu no país em que nasceu quando visitava as duas filhas, Elizabeth, que vive em Leiria, e Isabel Cristina, que mora em Pinhel, na Guarda.

Seu Antunes e Dona Maria dos Anjos são portugueses de nascimento — ele, de Arosa, Guimarães, ela, de Pinhel, Guarda —, mas escolheram o Brasil para viver quando ainda eram muito jovens. Foi lá, na terra que consideravam cheia de oportunidades, que eles se conheceram. Um dia, um amigo, que era primo de Dona Maria, convidou Antunes para ir ao porto do Rio de Janeiro buscar uma conterrânea que estava fugindo da pobreza de Portugal da época. Antunes, que trabalhava em um botequim, disse, primeiro, que não iria. Mas algo o fez aceitar o convite. Poderia ser um passeio agradável.

Ao ver Maria dos Anjos descendo as escadas do navio, ele bradou: “Vou me casar com ela”. E casou. A cerimônia religiosa foi realizada na Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, em Vila Isabel, bairro da Zona Norte do Rio que abrigou uma grande comunidade portuguesa nos anos de 1950 e 1960. O início da vida de imigrantes não foi fácil. Antunes foi trocador de ônibus, mas durou apenas um dia no emprego porque foi assaltado. Conseguiu, em seguida, uma vaga em um armarinho, migrou para uma loja que vendia uniformes escolares, de onde saiu para ser garçon, depois gerente e sócio do restaurante Metrô, na Cinelândia, centro do Rio. Foram 65 anos de contribuições ao INSS, que, agora, se recusa a dar a pensão que ele deixou para Dona Maria.

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José Raimundo e Antunes e Maria dos Anjos, no casamento. Ele se apaixonou por ela assim que a viu Arquivo pessoal

Seu Antunes morreu vítima de uma infecção generalizada, aos 86 anos. Ele vinha se tratando de um câncer de próstata, que estava sob controle. Mas a saúde começou a fraquejar no meio da pandemia do novo coronavírus. Em Portugal, com a mulher e as duas filhas, ele não escondia o pavor de pegar a Covid-19. Uma infecção urinária, no entanto, acabou por levá-lo ao hospital. As visitas estavam restritas, e isso o deixava mais angustiado. Seu Antunes acabou não resistindo. Morreu na terra que nasceu, mas longe do Brasil que ele escolheu para viver.

Choro e muito descaso

Procurado pelo PÚBLICO Brasil, o INSS ainda não se manifestou. Esse silêncio incomoda Elizabeth, a filha de Seu Antunes, que, com a mãe, decidiu sair a campo para resolver o que ela considera uma injustiça. “O que poderia ser pior do que perder um pai? O que poderia ser mais doloroso do que ver minha mãe chorando sobre um caixão fechado? O que poderia nos levar a um luto sem fim? A resposta é: a burocracia do INSS em reconhecer que meu pai, que viveu e trabalhou no Brasil por mais de 65 anos, morreu durante uma estada em Portugal”, diz.

Elizabeth, que se mudou para Portugal em 2020, teme que Dona Maria dos Anjos morra sem receber o que tem direito, a pensão deixada pelo marido. “É um sofrimento grande saber que meu pai faleceu durante suas férias na terra natal, Portugal, para ver as filhas. Filhas que resolveram fazer o caminho inverso de tantos imigrantes portugueses, como meus pais, que, nos anos 50 e 60, deixaram suas origens em busca de uma vida melhor no Brasil”, afirma.

Ela conta que, sem um atestado de óbito emitido no Brasil, pois Seu Antunes morreu em Portugal, a família teve de registrar o óbito junto ao 1º Registro Civil de Pessoas Naturais (RCPN). “De posse desse documento, demos entrada no pedido de pensão para a minha mãe junto ao INSS, onde permanece parado até hoje. Em janeiro de 2025, vai fazer três anos que ela ficou viúva. Três anos”, ressalta.

E acrescenta: “O velho Antunes, que amava contar piadas a seus fregueses, que amava o Brasil mais do que nós, filhas, pois dizia que o país lhe deu tudo, agora, é um nome esquecido no INSS. E esse descaso só faz minha mãe derramar mais lágrimas do que ela merecia em seus 84 anos de vida”.

Acordo que não funciona

Dona Maria dos Anjos ainda mantém a fé de que o INSS ainda lhe fará justiça. “Mesmo lutando contra a depressão causada por tudo o que está vivendo, ela reza não pelo dinheiro, que todos nós precisamos — hoje, vive apenas com sua pequena aposentadoria —, mas pelo reconhecimento de tantos anos de trabalho árduo do meu pai no Rio de Janeiro”, destaca Elizabeth, que chama a atenção para o fato de Brasil e Portugal terem um acordo bilateral em que direitos previdenciários de trabalhadores são reconhecidos, inclusive, para efeito de aposentadorias e pensões.

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Seu Antunes e Dona Maria dos Anjos no último aniversário dele, em 2021 Arquivo pessoal

“Que acordo é esse, em que o INSS não reconhece um atestado de óbito emitido em Portugal?”, questiona a filha de Seu Antunes. "Ele acordou a vida toda de madrugada para trabalhar. Não é justo o que está acontecendo", lamenta Dona Maria dos Anjos, que nunca deixava o marido sair de casa se a camisa dele não estivesse perfeitamente passada a ferro.

Elizabeth vai além: “Todos os dias, quando consultamos o site do Meu INSS e nada aparece, é meu pai morrendo de novo. Ele morreu sozinho no hospital, sem receber, em seus últimos dias de vida, a visita da mulher e das filhas, por causa do risco de contágio do novo coronavírus. Espero que a minha mãe não morra sem ter visto o nome do meu pai honrado pelo INSS. Que esse calvário finalmente termine, e que só a saudade nos faça chorar”.

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