Como se mantém um restaurante clássico? Deixando os filhos inovar
Em Matosinhos já não há filas de clientes noite fora e os empregados antigos estão a reformar-se. A nova geração dos restaurantes decanos quer fazê-los durar, mas tem de furar a resistência dos pais.
Atrás do balcão do Majára, uma das mais antigas marisqueiras de Matosinhos, Manuel, que trabalha aqui há 45 anos, colecciona os tiques de cada década. “Há tempos estava aí [do outro lado do balcão] o filho do Dr. Leão, nosso cliente. ‘Manel, sabes o que é que o meu pai comia?”, recorda o empregado de balcão uma conversa com a segunda geração de clientes. Sabia de cor: um flequibeque, uma sandes perdida, do tempo em que fazia todo o tipo de tostas e combinados. Era um pão de cachorro que se enchia de queijo depois de retirado o miolo para finalmente se pôr a gratinar. Manuel reproduziu-lhe a sandes e o filho do antigo cliente consolou-se.
Nos mais antigos restaurantes da cidade, clientes e gerências vão na segunda ou até terceira geração. Fazer um restaurante que dure mais de 40 anos não é simples. Os tempos mudam, já não há fartura de clientes e contratar pessoal está mais difícil. Para que um restaurante resista, chega sempre a altura de concordar: o filho é que sabe.
O Majára abriu há 54 anos, quando só havia dois tipos de restaurante em Matosinhos: tascas para os estivadores e as primeiras marisqueiras, abertas por Henrique Torres. O Majára foi uma das primeiras concorrentes, mas Jorge Rocha, actual dono do restaurante, sublinha o nome deste empresário com respeito e lembra que foi o marisco que deu nome à cidade — e não o peixe assado, uma tendência mais recente.
O pai também erra
Nos anos 1970, seis sócios (quatro jovens trabalhadores e outros dois, mais velhos e com capital) fundaram um novo restaurante para surfar a onda do marisco e dos snack-bars, muito pertinentes numa cidade cheia de funcionários despachantes a querer comer fora de horas ou de gente a sair das sessões de cinema a meio da tarde ou de madrugada. Pegaram na primeira letra de cada um dos seus nomes e deu Majára. O R era de Rocha, o pai de Jorge. “Quando o restaurante abriu, eu tinha quatro anos. Aos seis vinha para aqui trabalhar como grumo, abrir a porta aos clientes. Já tinha um mealheiro de categoria e só tinha de dizer ‘Boa noite’”, ri-se ao recordar.
Depois de abrir outros negócios de restauração, Jorge Rocha regressou ao Majára em 2009. “Vim como gerente. Com a idade avançada dos sócios, a casa estava velha, a decoração estava degradada, estávamos desactualizados”, afirma. “Era preciso mexer na forma como se faziam as compras. [Os anteriores sócios] tinham passado décadas a comprar stocks desmesurados porque isto sempre foi uma máquina de fazer dinheiro. Aquilo já não fazia sentido, mas quem tratava das compras era o meu pai e eu nunca consegui dizer-lhe que estava a fazer as coisas mal. Era meu pai”, confessa Jorge. “Só quando eles saíram consegui mudar isso.”
Até 2020, o pai e o tio, José Silva, também sócio-fundador, mantiveram-se no restaurante. Jorge Rocha e outros dois sócios compraram a sociedade e iniciou-se a modernização que tinha encontrado resistência na anterior geração. Não quer sofrer do mesmo mal e entregou imediatamente as redes sociais à mão da filha: “Ela pode dizer-me à vontade que não estou a fazer isto ou aquilo bem.”
Manteve ligações com o passado: a fotografia dos fundadores, uma outra da equipa de futebol do Majára nos anos 1970 e, o mais importante, os trabalhadores de sempre. Os empresários da restauração falam em dificuldade em contratar para o serviço de sala jovens, que não aceitam as longas jornadas de trabalho a que a geração anterior se habituou.
Como consequência, alguns dos restaurantes estão a fechar mais de um dia por semana a ou a repensar os horários de funcionamento, com os trabalhadores mais antigos à beira da reforma. “O Agostinho é chefe de mesa da casa há 30 anos, o Manuel entrou aqui em 1979. Nunca poderei mandar estas pessoas embora, um empregado de mesa não é para transportar comida. É nestas que eu posso confiar”, diz Jorge.
Pratos como no tempo dos avós
Para manter o estatuto de clássico, procura-se a difícil linha entre a actualização e a alegria de ouvir os clientes dizer “Continua como quando vinha aqui com os meus avós”. Nisto o menu é essencial. No Majára fazem-se as receitas de José Fernandes, cozinheiro fundador, e mantêm-se pratos do dia como o arroz de pato à terça ou a vitela assada ao domingo. Saíram as febras, os panados, os frangos, que não eram memoráveis, e fez-se uma conservadora inovação: os filetes de polvo com arroz do mesmo.
No Gaveto, a algumas ruas de distância, o cardápio de peixe e mariscos frescos mantém-se há 40 anos com pequenos ajustes impulsionados pelos irmãos Silva e pelo chefe de cozinha Humberto Alonso, aqui há 40 anos. Em 2017 começaram a servir a açorda de santola e a salada de lavagante, logo depois da época da lampreia.
Fazer equivaler os meses do ano a pratos obrigatórios do Gaveto foi uma técnica de marketing instaurada por Manuel Pinheiro, fundador e pai dos actuais gerentes, José e João Carlos Silva. Quando Manuel abriu o Gaveto, “Dezembro era forte, mas chegava-se a Fevereiro e desapareciam os clientes, iam para as lampreiadas de Entre-os-Rios. O meu pai começou a fazer e oferecer lampreia, para provar que aqui também era boa, e pegou”, recorda José Silva. O prato tornou o Gaveto famoso de Norte a Sul e uma instituição matosinhense. “Sem dúvida que o meu pai foi um visionário. Toda a gente aqui servia marisco e ele, um estranho, conseguiu afirmar-se”, conta o filho.
Em 1984, Manuel Pinheiro fundou um restaurante de pratos tradicionais — as tripas, os filetes de peixe, o bacalhau à Braga — e juntou-lhes o marisco que, na época, era abundante. José e João Carlos Silva continuam a comprar marisco desta costa sempre que possível, mesmo sendo mais caro, e “sempre a defender a cozinha tradicional e o respeito pelos produtos”.
“A Sãozinha e o filho, o Barbosa, são os nossos principais fornecedores de peixe e marisco. Temos uma relação não de fornecedores e clientes, mas de amizade. Estando previsto um temporal, avisam-nos para nos precavermos. Assim conseguimos ter sempre peixe de mar”, explica José Silva. Foi esta peixeira, conhecida no Mercado de Matosinhos por Sãozinha, uma das responsáveis pela fundação do Gaveto. Manuel Pinheiro já lhe comprava peixe para um restaurante que tinha na Praça dos Poveiros, no Porto, e um dia disse-lhe “Está aí a casa para si”.
Se for preciso, chama-se um Pritzker
Um restaurante com meses anunciava o fecho e foi uma boa oportunidade para Manuel Pinheiro. Nos últimos quarenta anos fidelizou, com a sua simpatia e discrição, clientes como Pinto da Costa, Luís Montenegro, Siza Vieira ou Souto de Moura. Para estes e outros, tão ou menos famosos, Manuel ainda é o relações-públicas da casa, apesar de os filhos tomarem as decisões sobre o restaurante sozinhos. Quando começaram a ter mais presença na gestão do Gaveto, por volta de 2015, o pai “aceitava bem tudo o que era para fazer caminho”.
Só a necessidade de obras de modernização do espaço não estava a convencê-lo. “Tinha medo que descaracterizássemos o espaço.” Tiveram de chamar reforços. “Falámos com o arquitecto Souto de Moura para nos ajudar a convencê-lo. Ele disse-lhe que o arquitecto que tínhamos escolhido era bom, que estivesse descansado.” João Pedro Serôdio desenhou as intervenções no espaço, adaptou o restaurante ao século XXI e à nova vontade dos filhos: tornar o Gaveto um restaurante vínico.
“Começámos a pensar nisso porque muitos clientes traziam garrafas especiais, o mercado estava a encaminhar-nos para aqui”, explica José Silva. Têm uma carta de vinhos reestruturada, um clube de vinhos que se reúne quinzenalmente e eventos com produtores, além da formação sobre vinhos ou sobre copos de vinho para os empregados de sala. Quanto às obras de 2017, os filhos tinham razão. “O meu pai, quando viu o resultado, quase falava nisto como se fosse ele o mentor do projecto… e a gente ria-se.”
Do outro lado do rio Leça, António Nora arrepende-se um pouco de ter remodelado o restaurante original dos pais, o Maria Moita. O espaço tem alvará desde 1946, na altura ainda como taberna. Com a chegada dos pais de Angola, em 1961 — ele tinha apenas meses —, o espaço ficou na família e passou a casa de pasto, com uma sala para os trabalhadores braçais, “que comiam comida de tacho”, e outra para “as pessoas de um certo nível”, que ficavam com os linguadinhos e os famosos filetes de pescada.
“O meu pai era difícil com os dinheiros, mas no início dos anos 1980 eu disse-lhe que isto precisava de levar uma lavadela de cara. Ele respondeu-me, ‘Não quero saber de nada, é contigo e com a tua mãe’. A entrada da taberna era com uma porta como as dos bares do Texas, tínhamos uns pipos e um balcão. Fechou-se essa porta e mais tarde fiz uma outra sala para aumentar a casa”, conta António Nora, o herdeiro de Noemi e Manuel Caetano e da avó que, desde os primeiros momentos, deu nome à casa.
“Em Matosinhos diziam ‘Queres comer bem? Vai à Maria Moita’. Vinham aqui embaixadores, Sá Carneiro, Mário Soares, António Guterres, Ferro Rodrigues, secretários de Estado.” Nas últimas décadas geria o restaurante apenas com a mãe e a cozinheira, Conceição, que está na casa há 30 e aprendeu a cozinhar com Maria Moita.
Desde há muito envolvida nas decisões das matriarcas sobre o restaurante, a terceira geração está agora sozinha, depois da morte recente de Noemi. O segredo de António Nora é manter tudo inalterado e só se arrepende de ter tirado da sala as pipas antigas: “Vai-se para modernices e aquele ar antigo era bonito.”