Depois da destruição de Gaza, também o Líbano teme pelo seu património histórico

A semana passada, bombas israelitas aproximaram-se perigosamente dos templos romanos de Baalbek, património UNESCO. Primeiro-ministro libanês apela à protecção do património cultural do país.

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Ruínas no sítio histórico de Al-Manshiya, nas imediações de Baalbek, depois dos ataques do exército israelita no fim-de-semana Maher Abou Taleb/reuters
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A maioria da população viu-se obrigada a fugir. A residente fê-lo pela primeira vez, a que ali chegara já em fuga fê-lo novamente. Foi o que aconteceu na quarta-feira da semana passada em Baalbek, após um alerta do exército israelita para o bombardeamento iminente da cidade histórica no Nordeste do Líbano e seus arredores. Quatro horas depois, as bombas caíram sobre a cidade. Além das perdas humanas, as preocupações concentravam-se também no destino que teria o seu parque arqueológico, que alberga alguns dos mais bem preservados templos romanos do mundo e que é património mundial da UNESCO desde 1984. Sobreviveram ao bombardeamento, mas, segundo as Nações Unidas, continuam sob ameaça.

Esta segunda-feira, o primeiro-ministro libanês, Najib Mikati, pediu a protecção do património arqueológico do país. “Apelamos a um cessar-fogo imediato para pôr fim à violência sem sentido e para proteger o património cultural do nosso país”, declarou em comunicado, exortando o Conselho de Segurança da ONU a proteger, em particular, os sítios arqueológicos de Baalbek, no Noroeste libanês, e de Tiro, no Sul, uma das mais antigas cidades habitadas em continuidade do mundo, também património mundial da UNESCO, e que, antes de Baalbek, foi também alvo de aviso de evacuação, seguido de bombardeamento israelita.

Desde a invasão do Líbano por Israel no início de Outubro, numa escalada da guerra travada com o Hezbollah, foram “destruídas ou severamente danificadas” mesquitas em Yaroun, Maroun el-Ras, Blida e Kfar Tibnit, vilas do Sul do Líbano, bem como uma igreja greco-católica melquita na referida cidade portuária de Tiro. No que diz respeito a Baalbek, a 1 de Novembro, fonte do Gabinete de Direitos Humanos da ONU afirmava à agência de notícias Associated Press que, após o aviso de evacuação emitido pelo exército israelita, os raides da sua força aérea “aproximaram-se perigosamente” do complexo de templos romano.

Refúgio nas ruínas

Antiga cidade fenícia, conquistada por Alexandre, o Grande, que a baptizou Heliópolis, e que viria a ter o seu apogeu sob domínio romano, Baalbek representa, segundo a UNESCO, “um dos melhores exemplos da arquitectura da Roma imperial no seu apogeu”. Nessa altura, entre os séculos I e III, milhares de peregrinos viajavam até à cidade para visitar o gigantesco Templo de Júpiter, o de Baco, o de Vénus ou de Mercúrio.

No presente, a sua escala monumental e o bom estado de preservação dos seus edifícios, em particular os templos de Júpiter e de Baco, tornam-na uma grande atracção turística e um dos principais motores económicos do Vale do Beqa’a, região empobrecida e bastião do Hezbollah onde encontramos Baalbek, a 67 quilómetros da capital libanesa, Beirute. O seu carácter excepcional e a sua relevância histórica levaram a que habitantes da cidade procurassem refúgio entre as ruínas do sítio arqueológico para escapar aos bombardeamentos da força aérea israelita, noticiava a estação de rádio norte-americana NPR.

Bachir Kodr, governador de Baalbek-Hermel, província a que pertence Baalbek, relatou à NPR que nem ali considerava que os cidadãos estivessem a salvo. “Exortei-os a abandonar toda a cidade de Baalbek”, declarou, acrescentando ter dado ordens para que o sítio arqueológico fosse inspeccionado para assegurar que não albergava armamento ou combatentes do Hezbollah, tendo igualmente reforçado a presença de forças de segurança para impedir saques ou infiltrações.

O número de mortos da região ultrapassava no início desta semana a centena, mas os milenares edifícios e estruturas greco-romanas foram, até agora, poupados a ataques directos das forças israelitas, que continuam a bombardear intensamente toda a região. Contudo, será necessário avaliar posteriormente se o rebentamento de bombas tão próximo do complexo provocou algum tipo de dano na estrutura dos edifícios. As autoridades libanesas dão conta de que as acções militares terão, contudo, destruído duas muralhas às portas da cidadela, bem como velhas casernas militares, reconvertidas em espaços de habitação, datadas do período do Mandato Francês para a Síria e Líbano (período de 23 anos, entre 1923 e 1946, em que os dois países foram administrados pela França, na sequência da queda do Império Otomano no fim da I Grande Guerra).

Os apelos do primeiro-ministro libanês para que o património do país seja protegido surgem quando é há muito conhecida a devastação patrimonial provocada em Gaza por Israel. “Entre 7 de Outubro de 2023 e 26 de Janeiro de 2024, 63% de todos os sítios patrimoniais de Gaza sofreram danos — tendo 31% deles sido destruídos”, assinalava um relatório de avaliação de danos feito pelo Banco Mundial em Março. Estas percentagens serão agora, previsivelmente, mais elevadas. Entre o património destruído ou danificado, sempre com a justificação de os edifícios albergarem combatentes do Hamas ou serem pontos de entrada do seu vasto complexo de túneis, encontra-se a Grande Mesquita de Gaza e a sua biblioteca, o Palácio Pasha, datado do século XIII, o Mosteiro de Santo Hilário, edificado no século III ou o Hammam Al-Sammara, estrutura de banhos turcos do século XIV. Foram igualmente destruídos os dois únicos centros de arte contemporânea de Gaza, o Shababeek, que albergava cerca de 20 mil obras, e o Eltiqa.

No Líbano, os efeitos da guerra na arte e no património não se manifestam apenas no país, mas também além-fronteiras. Na semana passada, o jornal francês Libération noticiava que o Instituto do Mundo Árabe (IMA), em Paris, se viu obrigado a cancelar uma programação dedicada a Biblos, ancestral cidade libanesa cuja fundação recua ao século VIII a.C., património mundial da UNESCO, que teria início em Novembro.

“Nem nós, nem os nossos parceiros queríamos abandonar o projecto. Os libaneses são um povo orgulhoso e não queriam que a guerra os impedisse de realizar a exposição, declarou Jack Lang, director do IMA, ao Libération na passada quinta-feira. O transporte das obras e artefactos até Paris revelou-se, porém, impossível. As estradas estão bloqueadas, as vias de acesso bombardeadas, milhões de refugiados estão na estrada. Há um perigo iminente e tantas outras prioridades”, relatava Nathalie Bondil, directora do departamento do museu e exposições do IMA.

Segundo relatos da imprensa libanesa, os ataques israelitas chegaram há duas semanas a uma aldeia nas proximidades da cidade de Biblos e respectivo sítio arqueológico.

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