Paolo Giordano: “Como se reconstrói a esperança na era dos fenómenos extremos?”

Tasmânia, o mais recente livro do autor de A Solidão dos Números Primos, debruça-se sobre um tempo em que, perante catástrofes iminentes, ainda estamos a aprender a nomear o sentimento de perda.

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Paolo Giordano Maria Moratti/Getty Images
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Tasmânia, a mais recente obra do escritor italiano Paolo Giordano traduzida em Portugal, explora as catástrofes em várias configurações possíveis – pessoal, climática, nuclear, terrorista. “Tentei escrever um livro numa era de fenómenos climáticos extremos, em que o amanhã não é uma consequência coerente do hoje”, afirma o autor de A Solidão dos Números Primos numa entrevista ao Ípsilon por videochamada, realizada em Outubro, semanas antes da Cimeira do Clima das Nações Unidas (COP29), que decorre a partir de segunda-feira em Bacu, no Azerbaijão.

Paolo Giordano (Turim, 1982) foi o mais jovem escritor distinguido com o Prémio Strega – tinha apenas 26 anos –, tendo na altura interrompido uma carreira científica na área da física de partículas para se dedicar inteiramente à literatura. Acredita que é o seu lado artístico que lhe permite manter alguma esperança perante a possibilidade de um apocalipse climático – não fosse isso, já estaria entregue ao desespero. Defende que a indústria dos combustíveis fósseis se sente à mesa de negociações e critica a criminalização do activismo climático na Europa. Já tem em mente um novo livro – e a narrativa decorre durante uma onda de calor.

A COP29 começa dia 11 de Novembro em Bacu, no Azerbaijão. No ano passado, realizou-se no Dubai. As negociações sobre o clima estão dominadas pelos países produtores de petróleo?
Sim. Mas não tenho a certeza se isso é a pior coisa do mundo. De alguma forma, eles precisam de fazer parte do jogo, precisam de estar a bordo. Não podemos continuar a jogar este jogo do bem contra o mal. Não sei exactamente o que fazer a seguir, mas sei que o jogo maniqueísta não funciona mais.

Sinceramente, o que acho mais chocante são leis aprovadas recentemente por governos para punir manifestações climáticas, como os bloqueios de estradas e tudo o mais, tornando as penas mais pesadas para activistas. Está a acontecer em Itália agora, mas já aconteceu na Alemanha e no Reino Unido.

É importante dialogar com quem lucra com os combustíveis fósseis?
Sim. É claro que me pareceu ridículo quando soube que o Dubai receberia a Cimeira do Clima no ano passado. Depois, ocorreu-me que talvez não fosse assim tão errado. Temos de nos tornar adultos ao lidar com esta crise. Todas as pessoas que estão lá, do lado da ciência, do lado social, da saúde pública, todos temos de crescer e fazer isto num mundo real, que é cheio de compromissos, contradições e pessoas das quais nós não gostamos. Precisamos de dar um passo em frente.

Tasmânia começa com a ideia de perda: o desejo frustrado de ter um filho. O narrador gere essa “pequena catástrofe pessoal” partindo para Paris, onde vai participar na histórica Cimeira do Clima de 2015, ao fim da qual os países concordaram em limitar a subida da temperatura global a 1,5 graus Celsius. Sabemos hoje que esta meta está longe de ser alcançada. A ideia de perda é também ambiental, colectiva?
Quando comecei a escrever Tasmânia, ainda estava a considerar a meta dos 1,5 graus Celsius da COP21. Agora, às portas da COP29, penso que já passei dessa fase, creio que já não vamos a tempo desse objectivo. Não estou de todo a dizer que a mitigação não vale a pena, mas pessoalmente penso mais na adaptação climática. Parece-me mais palpável. Tem filhos?

Sim.
Estamos num momento em que ter filhos pode parecer uma coisa irracional, e isso é algo de que falo em Tasmânia. Mas houve alguma vez uma altura em que ter filhos não era completamente irracional? Durante a era atómica? Entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial? É sempre uma coisa irracional. Ser escritor, nesse sentido, confere um forte equilíbrio ao cientista que há em mim. A minha porção cientista estaria desesperada, mas o escritor não pode escrever sem esperança.

Pode explicar melhor?
É algo que descobri muito recentemente. É completamente impossível escrever sobre o que quer que seja se não encontrarmos uma forma de esperança no que se está a escrever, seja qual for o nível. Durante a escrita de Tasmânia, houve a invasão da Ucrânia. Eu tinha metade do livro pronto e sabia exactamente que a guerra não podia estar neste livro, porque a história acabaria antes da pandemia. Mas depois aconteceu uma mudança dramática, inesperada e abrupta. Durante semanas fiquei bloqueado. O desespero apoderou-se de mim, simplesmente não conseguia escrever. Por isso, de certa forma, o simples acto de escrever para mim tornou-se uma forma de não sucumbir ao desespero – incluindo o desespero em relação ao clima. Isto para dizer que precisamos de um diálogo que não fique estagnado no limite de 1,5 graus Celsius.

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Da física de partículas à literatura: Paolo Giordano Stefania D'Alessandro/Getty Images

Acha que é um limite que, se ultrapassado, pode trazer a ideia de que tudo está perdido?
Sim. Ficamos um pouco agarrados a essa ideia, o debate estagnou-se ao longo dos últimos anos. Há uma transformação do nosso lado que é necessária, precisamos de estar preparados para uma espécie de metamorfose – a muitos níveis, o que é óptimo.

Há uma personagem que diz que num dia morreremos de sede e, noutro, afogados. É sobre um futuro próximo, mas, de algum modo, já está a começar a acontecer. Neste Verão, a Sicília esteve sem abastecimento de água, que acabou por se tornar um produto vendido num mercado paralelo e informal.
Tanto a Itália como Portugal são países severamente afectados por estes fenómenos, especialmente ondas de calor durante o Verão. As coisas estão a agravar-se de ano para ano. Temos tido Verões escaldantes que nunca mais acabam. E depois vem a chuva de repente, de uma vez só. Durante muito tempo foi difícil para o público compreender que as alterações climáticas constituem algo muito mais complexo do que o aquecimento global. São fenómenos extremos. Conhece o livro The Great Derangement [2016], do escritor indiano Amitav Ghosh?

Sim. Amitav Ghosh usa a experiência de um tornado para questionar a escrita contemporânea sobre fenómenos climáticos extremos.
Quando li, recordo-me de ter pensado: este livro levanta uma questão importante sobre o facto de o romance não ser, em si mesmo, um género muito adequado para acolher as alterações climáticas. Isto porque o romance tende a falar de coisas que são ordinárias, previsíveis e que se movem devagar, ao passo em que estamos agora num tempo em que as coisas mudam abruptamente. Então, o que podemos fazer? Comecei a pensar nesta questão quando o livro de Amitav Ghosh foi publicado. Tasmânia é uma forma de responder a essa questão vários anos depois. Tentei escrever um livro numa era de fenómenos extremos, em que o amanhã não é uma consequência coerente do hoje. Isto é difícil do ponto de vista científico – uma vez que a ciência pensa de um modo progressivo –, mas ainda é mais difícil de incorporar nas nossas próprias vidas. Como construir uma família, uma história de amor? Como ter esperança? Como se reconstrói a esperança na era dos fenómenos extremos?

Como? Se a resposta não depende de nós, mas sim de um esforço político-económico global?
A única coisa relevante neste momento é uma acção global efectiva. Fizemos da crise climática uma questão moral durante vários anos: “Depende de ti, muda os teus hábitos, recicla o teu lixo”. Acho que já passamos desse ponto. Devemos deixar cair esse peso moral, porque as pessoas rapidamente ficam cansadas quando estão a ser culpadas, sobretudo quando estão a ser responsabilizadas por coisas das quais não têm de facto culpa, e aceitar que isto exige esforço político global. Mas continuamos a debater-nos com a questão existencial. Porque, afinal, a primeira coisa de que precisamos é realmente aceitar a ideia de que estamos a viver tempos dramáticos. Não tristes, dramáticos. Isto muda tudo de alguma forma.

O que é necessário para essa mudança ter lugar? Parece-me uma transformação muito pessoal.
O que tive de fazer no livro foi recorrer a duas analogias. O contexto da primeira é, obviamente, completamente diferente, mas continua a ser a Europa. Ainda é. Pareceu-me bastante natural voltar aos anos dos ataques terroristas na Europa, nos países ditos pacíficos. Porque foi uma mudança profunda no nosso sentido de segurança. De repente, aconteceu o atentado na sala de concertos Bataclan [13 de Novembro de 2015, em Paris]; houve uma longa série de ataques terroristas horríveis. Mudámos alguns dos nossos comportamentos. Mudámos os controlos de segurança no aeroporto, o que foi fácil, mas mudámos intimamente a forma como nos reuníamos em grandes espaços. E ainda não acabou. Neste Verão, na Áustria, parte do concerto da Taylor Swift foi cancelado devido a ameaças terroristas. Ainda estamos de alguma forma a ajustar-nos a isso. Deixámos que esse pensamento terrível entrasse nas nossas vidas e nos mudasse.

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Um homem ferido é transportado para fora do Le Bataclan após o ataque, em Paris, a 13 de Novembro de 2015 Christian Hartmann/Reuters

Qual é a outra analogia?
A outra analogia, que é muito mais dramática, foi com os sobreviventes das bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Eles são os únicos que realmente testemunharam a coisa mais parecida com um fim do mundo que a humanidade já viveu. Viram isso e foi uma novidade para eles, porque ninguém conhecia essas armas nucleares. Simplesmente acordaram num mundo que era a destruição total. Nem sequer sabiam como nomear o que estava a acontecer. Penso que isso é muito parecido com algo que nos está a acontecer, esta dificuldade em nomear. Por isso, acho que é mais fácil trabalhar neste momento com analogias: é a única coisa que temos. Por outro lado, estas ameaças maciças também nos lembram do que a humanidade foi capaz de fazer: ajustar, adaptar, coordenar – embora nem sempre da melhor forma.

Há também a metáfora à volta da ilha australiana que dá nome ao livro. Quer falar sobre isso?
Durante a escrita, deparei-me com um artigo pseudocientífico sobre cenários climáticos para o futuro, indicando quais seriam os melhores sítios na Terra para encontrar abrigo numa catástrofe global. A Tasmânia estava muito bem classificada. Não sei se estava, de facto, em primeiro lugar. Foi muito interessante ver os parâmetros que os cientistas tiveram em conta para fazer esta classificação. Não eram simples, havia critérios climáticos como latitude ou a altitude, mas também havia outros, como a disponibilidade de recursos.

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O narrador de Tasmânia visita Hiroshima para conhecer sobreviventes da bomba atómica de urânio, lançada sobre a cidade japonesa a 6 de Agosto de 1945 Reuters

Água potável, por exemplo?
Sim. E outros parâmetros ambíguos, eu diria até distorcidos, como a possibilidade de defender o local, porque a Tasmânia é uma ilha, um território que não é fácil de alcançar e, por isso, é mais fácil de proteger. Isto porque podemos esperar vastas ondas de migração e guerras climáticas, pelo que temos de estar preparados para nos defendermos. Todo o cenário começou então a tornar-se sombrio. Havia também a questão social: a Tasmânia estava num Estado democrático – a Austrália –, os cientistas consideravam importante não haver uma espécie de ditador. Então, todas essas coisas despertaram em mim um interesse muito grande.

A Tasmânia seria um refúgio capaz de reproduzir o statu quo, mantendo um sistema de privilegiados e desfavorecidos.
Exactamente. Mas o que foi fascinante para mim foi a clara injustiça por detrás de tudo isto. Quantas pessoas caberiam na Tasmânia? A ilha poderia acolher os mais ricos da Terra, os que já estão a comprar terras em regiões como a Nova Zelândia. Portanto, há um nível de injustiça subjacente. Eu tinha aquela ideia fantasiosa da Tasmânia como uma espécie de Éden, mas que é, ao mesmo tempo, um jardim de Éden envenenado. Queria que o título transmitisse todas estas ambiguidades – e também gosto muito do nome Tasmânia.

Disse que escrever é, para si, uma forma de fugir ao desespero em tempos de crise. A escrita também funciona como um abrigo climático, uma Tasmânia acolhedora?
De certa forma, sim, mas eu chamo-lhe refúgio. Mantém-me em conversa com a coisa em si, não me deixa preso ao desespero – não só por causa da crise climática, mas também porque os últimos anos têm sido muito intensos em termos de situações perturbadoras. As esperanças em que estávamos a confiar desmoronaram-se. Escrever é uma forma de me manter em contacto com tudo isto e fazer algo a partir disto, porque penso que um dos maiores problemas com a dor é que as pessoas não sabem realmente como lidar com ela. São atravessadas pela dor e depois ficam-se por ali. Ser escritor, nesse sentido, pode ser uma verdadeira bênção, porque temos a oportunidade de fazer algo com o que acontece não só connosco, mas também com as pessoas à nossa volta, com o sentimento de perda.

Está a trabalhar num novo livro?
Vou começar agora. Posso ser profundamente obsessivo em termos de rituais antes de começar um livro. Não é superstição, apenas me torno muito obsessivo. Tenho estado a mudar completamente a mobília da casa, a reorganizar estantes de livros, a pôr ordem no espaço físico antes de embarcar nessa viagem.

Já tem uma ideia e estrutura na cabeça?
A atmosfera que tenho em mente está muito relacionada com a nossa conversa. Tenho a ideia de um romance que, desta vez, decorre num período de tempo curto: no intervalo de uma fortíssima onda de calor. Gostaria de transmitir essa sensação de estar a suar, suar, sem parar, dia e noite.

A ideia é representar o fluxo de consciência das personagens durante a onda de calor; a forma como a própria temperatura afecta o comportamento humano?
É exactamente isso que eu gostaria de tentar fazer: quando o calor fica tão insuportável que derrete a nossa própria percepção do tempo, o sentido de normalidade. Tudo se derrete e até as conexões que estabelecemos entre as coisas parecem mudar. Esta é a ideia, mas não tenho para já muito mais do que isso – esta é a primeira vez em que estou a falar disso.