Um Pouco Mais de Azul: a palavra da semana é daimoso

O que fazem um jornalista, um economista e uma poeta, neste episódio do podcast Um pouco mais de azul?

Rita Taborda Duarte vai debruçar-se sobre o livro de não ficção literária O que é meu, livro de estreia de José Henrique Bortoluci. Um modo daimoso, generoso, de contar a História do Brasil, e suas feridas, através da sua própria experiência. Fernando Alves mostra a enorme distância que existe entre Miguel Torga e Ricardo Leão, o polémico autarca de Loures. Francisco Louçã aborda o resultado das eleições presidenciais nos Estados Unidos e também o conflito nas periferias de Lisboa.


O podcast Um Pouco Mais de Azul é um podcast independente da rede Público. Está disponível às quintas-feiras, quinzenalmente, em todas as aplicações para escuta de podcasts — como a Apple Podcasts ou o Spotify —​ e na área de podcasts do site do PÚBLICO.

Em baixo pode ler excertos do episódio desta semana.


Um modo mais daimoso de contar a História pela história

Rita Taborda Duarte

Leitura de O que é meu, de José Henrique Bortoluci

A palavra que nos une no podcast de hoje é daimoso; palavra que, se posta a uso, poderia trazer um pouco mais de azul a este mundo, que cada vez mais parece insistir em arrancar os alicerces do humano. Penso também na progressiva trumpização do mundo, no rescaldo das eleições americanas. Tudo se torna, no vertigo dos dias, página virada, na esteira das coisas passadas. Por vezes, é preciso ouvir as pequenas histórias pessoais, a reportagem de um quotidiano comum, para acedermos à complexidade do mundo. É com essa consciência que resgato hoje um livro de não ficção literária: O que é meu, livro de estreia do escritor e sociólogo brasileiro José Henrique Bortoluci, nascido em 1984, e em que o autor recupera a vida do pai, camionista, que percorreu as estradas do Brasil, durante cinquenta anos. A ficção, por vezes, dá-nos instrumentos, para fintarmos esta época, em que as notícias irrompem em forma de cometa: um clarão que enche o olho, e logo se apaga, para se passar, em atropelo, à notícia seguinte. O que é meu, de José Henrique Bortoluci, é, no entanto, um livro de não ficção literária, em que por meio de um muito subtil trabalho da linguagem e de organização do discurso, o autor nos mostra um pouco de si, da sua relação com a família, da vida concreta do pai enquanto camionista, para dar a ver as feridas da sociedade brasileira. No fundo, O que é meu socorre-se de discursos diversos, para dar conta do puzzle de todas as histórias que fazem parte da História. Ou se quisermos, mostrando que História é feita, sim, das pequenas histórias. E talvez seja a ambiguidade em que mergulha, que o faz chegar tão longe, no modo com que nos toca a fundo. Ali se mostra e pensa a realidade histórica e política de cinquenta anos de vida no Brasil, atravessando os tempos da ditadura, até à actualidade, em milhares de quilómetros, e entrelaçando o que é documento social na memória mais íntima e pessoal.

José Henrique Bortoluci propõe ver um país pelas margens do asfalto, partindo de relatos gravados, em sucessivas entrevistas, ao seu pai, José Bortoluci, mas mais conhecido por Didi ou Jaú, camionista e vítima de um cancro na velhice. O livro enfileira as memórias do pai nas reflexões do filho: duas perspectivas, dois ambientes sociais, o do pai e o do filho, e dois modos de fala diversos, e que são História, por si só. As transcrições exactas (que não corrigem os erros ou idiossincrasias de linguagem) da fala do pai pontuam o registo da escrita do filho, enleando a intimidade das memórias com os pensamentos e reflexões críticas, por vezes mais teóricas, sobre a condição politica, histórica e cultural do Brasil. Cabe ao filho, escritor, interpretar, então, para lá da berma, alargando o mundo íntimo ao mundo político, também cultural. E face às palavras concretas do pai, buscando contar a sua história de homem comum, lembra Brecht: Como sugere Brecht, procuro os construtores dos palácios e das muralhas, não os nobres e generais que os comandam; as cozinheiras, motoristas, jardineiros e faxineiras, e não os dignitários nos salões do poder.

A difícil vida de Didi, passada na estrada, também o seu cancro, na velhice, a pobreza austera, remediada, a que uma vida de esforço o votou, é bem a metáfora do Brasil dilacerado, ao longo dos tempos e dos locais, com as estradas rodoviárias a atravessarem territórios de uma trintena de povos indígenas, dizimados, num genocídio sem igual. Cancro e estrada são condição íntima, pessoal, de um homem, mas também os símbolos de um país. A generosidade, o acto daimoso, de José Henrique Bortoluci, ao oferecer este livro, esta memória, ao leitor que o lê, não resulta do facto de este se fundar na verdade concreta, não ficcional, da vida do seu pai; resulta, sim, desta capacidade de transformar uma memória e sentimentos íntimos e pessoais, numa compreensão mais lata e profunda da sociedade, da política, dos espaços e dos tempos, que atravessam essa palavra tão abstracta que dá pelo nome de realidade. A certa altura, no livro, surge a frase que lhe empresta o título, palavras transcritas da boca do pai: O que é meu é tudo aquilo que guardei na memória e que posso contar. Mas é a capacidade literária de José Henrique Bortolucci, nessa expansão da língua que só a literatura possibilita, que consegue, com mestria, transformar em nosso tudo aquilo que, antes, era só seu.

José Henrique Bortoluci, O que é meu, Lisboa, Companhia das Letras, 2024


Ganhou um fascista

Francisco Louçã

O paradoxo do historiador Robert Paxton merece reflexão: desconfiado de analogias históricas, recusou classificar o Trump como fascista até ao dia do ataque ao Capitólio, que talvez lhe tenha lembrado os episódios da “marcha sobre Roma” de Mussolini ou do incêndio do Reichstag em Berlim. A analogia é sempre limitada, sobretudo pelo facto menos sublinhado: como nos conta uma história que já se passou, sugere um desfecho inevitável. Em todo o caso, creio que aqui se justifica usar o termo. Sim, Trump é fascista.

O fascismo teve formas muito diferentes, o que aliás serviu para alguns dos seus justificadores tentarem branquear a conotação desse passado. Lembra-se quem lê estas linhas de quanto argumentaram que Salazar escapava ao universo dos fascismos por qualquer dos particularismos purificadores do seu trajecto. Ora, os fascismos foram laicos (Hitler) e católicos (Mussolini, Salazar), nasceram de uma guerra (Franco) ou desencadearam a guerra (Mussolini e Hitler) – logo, não se casam num classificador simples e único, nem na ideologia nem na política. O que, apesar dessas diferenças, a todos torna fascistas são quatro traços: a figuração do chefe como o redentor que tem uma relação directa com o povo; a instauração da norma do estado de sítio ou de submissão da democracia; a promoção da guerra para reforçar a ideologia imperial e esse estado de excepção; e o supremacismo, racista e machista, ou ainda assente em outras discriminações. E poderia acrescentar-se um quinto traço, o apoio dos ultrabilionários, que vêem neste autoritarismo a garantia do processo futuro de acumulação de capital. O projecto que Trump não oculta responde a estes critérios.

Ter um presidente fascista não significa que o regime se torne fascista. Bolsonaro ganhou em 2018 e o Brasil não foi um estado fascista e, aliás, o “messias” perdeu em 2022. Trump ganhou em 2016 e não conseguiu abolir as eleições (o que agora insinua, mesmo que lhe seja impossível, pelo menos sem uma guerra) e perdeu em 2020. Pelo caminho, o seu actual vice-presidente e herdeiro, J.D. Vance, apelidou-o de “Hitler americano”. Em qualquer caso de evolução futura, haver um presidente fascista é já um passo importante para o abismo, um ponto de partida que torna imprevisíveis as suas acções. Para Trump, só existe a lógica superior de subordinar a política à manutenção do seu próprio poder. O apoio empenhado de Elon Musk demonstra tanto a instrumentalização deste regime, quanto a sua conjugação com a perda de sentido de comunidade – diz-se agora, de empatia – que as redes sociais promovem. Se queremos encontrar o primeiro cultor destas ideias, aí está, é a ecologia das redes, que são aliadas do fascismo. Foi o que se confirmou na noite desta terça-feira.

(neste episódio de Um Pouco Mais de Azul trato ainda a posição de Ricardo Leão, autarca de Loures, e o debate que suscitou pela sua aproximação ao Chega)


Uma ideia daimosa, à atenção de Pedro Nuno Santos.

Fernando Alves

A semana passada decidi reler, ao vagaroso ritmo de um por dia, os 14 pequenos contos de Os Bichos de Miguel Torga. E logo no primeiro, aquele que nos revela os últimos dias de vida de Nero, o cão ao qual “nada mais restava sobre a terra senão morrer calmo e digno”, uma palavra me prendeu à trela. No conto de Torga, Nero mostrava-se resignado com a triste cova que lhe seria aberta “debaixo da figueira lampa”. Ao menos, no tempo dos figos, ali viria a patroa velha sentar-se, pela fresca, a consolar a barriga. “Gostava de figos, a velhota”. Nero gostava mais da filha que o afagava e o consentia ao lume. O velho tinha dias. Já o doutoreco janota era só ordens, uma interminável afirmação da posse. Gostava de ser obedecido e treinava-o para a caça, “busca, Nero, busca”. Em resumo: Nero “gostava da voz cristalina da dona nova, da índole daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote”.

Fiquei preso à palavra “daimoso” como Nero ao cheiro da perdiz. E abri o dicionário. “Daimoso: o mesmo que generoso, afável, dadivoso”. Daimoso é o atributo que Ricardo Leão não esbanjou numa recente saída de sendeiro que mereceu, aliás, a justa indignação de camaradas de partido como Elza Pais. A estrutura das mulheres socialistas lembrou, a propósito, que “a praga do populismo” se infiltra “em todo o lado”. Nesse ínterim, vultos mais ou menos opacos da rosa desmaiada firmaram arrebatados likes nas redes de Leão, enquanto Pedro Nuno guardou, até onde pôde, de Conrado, o imprudente silêncio.

Fraco proveito tirou da análise certeira de Ana Sá Lopes, na última página do Público, na manhã de segunda-feira. Quebrando o silêncio, o secretário-geral do PS foi estranhamente daimoso com o autarca de Loures. Não obstante considerar que Ricardo Leão “não teve um bom momento”, Pedro Nuno pousou sobre ele o mesmo adjectivo dadivoso que Drummond pousou sobre o ipê amarelo. É preciso gostar muito de poesia para acreditar que o secretário-geral do PS encontrou, tal como o poeta, o seu “tempo de ipê”, e se propõe erguer à sombra do ipê amarelo – vá lá, do roxo e belíssimo jacarandá lisboeta – o seu “tempo de glória”.

Pois é, talvez, chegado o momento de reclamar ao dirigente socialista um gesto daimoso mais vasto, uma arrebatada proclamação como aquela que um outro Leão lançou, no 5 de Outubro inaugural, da varanda dos Paços do Concelho.

Não espero likes nas redes sociais que não frequento, escapa-me o rabo de fora do gato escondido da manobra política, não tenho um Nero que fareje por mim, “busca, busca”, as novidades dos salões, não sei de táctica nem de estratégia, voto à esquerda onde sinta uma vibração genuína por uma vida mais digna, não tenho cartão de partido nem me inibo de apoiar quem me apeteça. Mas creio chegado o momento de uma candidatura forte que una toda a Esquerda na ambição de aliviar Lisboa da nota baixa de Moedas.

Este é o momento de dar troco a Moedas. Como lembrou recentemente Francisco Louçã, “se o PS continua a mostrar que não quer disputar a cidade”, devemos confrontá-lo com o exemplo de Jorge Sampaio que deu um passo em frente, quando era secretário-geral do partido. Louçã não diz o nome que, lendo as suas palavras, me ocorre. Mas digo eu, sem cuidar de saber se Louçã tem, para esse combate capaz de unir a Esquerda em Lisboa, um nome na cabeça. Ou sequer se esse nome coincide com aquele que, lendo Louçã, me ocorre. Ora o nome que me ocorre é o de Pedro Nuno Santos.

Creio que Pedro Nuno tem aqui talvez a única batalha eleitoral ambiciosa de que pode sair vitorioso nos próximos anos.

Tal como aconteceu com Jorge Sampaio, Lisboa não será para Pedro Nuno, um fim de caminho. Pelo contrário, perder Lisboa será, para toda a Esquerda, a começar pelo PS, mais um sinal de declínio eleitoral e de fechamento ao diálogo. A capacidade de negociação atribuída a Pedro Nuno Santos será posta à prova no desfecho da conversa à volta de uma candidatura conjunta a Lisboa. Não vejo outra oportunidade tão propícia para federar a Esquerda à volta de uma ideia mobilizadora de cidade, outra maneira de dizer à volta do ipê amarelo. Como explica, aliás, o poema de Drummond, também há um ipê rosa. O poema termina com um verso daimoso, mesmo dadivoso: “Este é tempo de ipé. Tempo de glória”. Pense nisto, Pedro Nuno.

Sugerir correcção
Comentar