Faça chuva ou faça sol, países devem aumentar brutalmente apoio à adaptação climática. Valência é um exemplo
Ajuda internacional à adaptação para países em desenvolvimento teve maior aumento desde 2015. Mas isso é pouco face ao défice de financiamento de milhares de milhões de euros, diz relatório da ONU.
Os países devem aumentar brutalmente o financiamento público para a adaptação climática e, mesmo assim, esse acréscimo ainda poderá ser pouco para enfrentar os desafios da crise climática – e o compromisso internacional deve avançar já nesta Cimeira do Clima que vai decorrer de 11 a 22 de Novembro no Azerbaijão. Esta é uma das principais conclusões do Adaptation Gap Report 2024, divulgado esta quinta-feira pela agência das Nações Unidas para o ambiente (UNEP, na sigla em inglês).
“O relatório sobre o défice de adaptação é claro: a calamidade climática é a nova realidade. E nós não estamos a acompanhar. A Terra está a arder. E a humanidade está exposta. Este ano, sofremos o dia mais quente e os mares mais quentes dos livros de história. Quinze dos últimos dezasseis meses bateram recordes de temperatura. E esta quinta-feira, a Organização Meteorológica Mundial e os seus parceiros dizem-nos que 2024 está no bom caminho para ser o ano mais quente alguma vez registado”, afirmou António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, na conferência de imprensa online de apresentação do documento.
Durante a curta intervenção, António Guterres recordou vários fenómenos climáticos extremos que ocorreram no planeta durante os últimos seis meses: inundações na África Oriental e no Brasil em Maio, assim como vagas de calor na Ásia; calor mortal no México, no Médio Oriente e nos Estados Unidos (EUA) em Junho; o mais antigo furacão de categoria cinco das Caraíbas em Julho; cidades gregas cercadas pelo fogo em Agosto; o Sudeste Asiático e os EUA com furacões e a América do Sul com incêndios florestais recorde em Setembro e, em Outubro, inundações que causaram estragos no Sahel e em Espanha.
“O impacto destrutivo da crise climática nunca foi tão evidente como nos últimos tempos. Catástrofes como a que está a ser vivida em Valência, em Espanha, são a prova clara de que não estamos a fazer o suficiente para travar a crise climática e que uma resposta global nunca foi tão necessária. A adaptação tem sido frequentemente ofuscada pela mitigação, mas, à medida que os impactos climáticos se agravam, é urgente a necessidade de pensar mais a fundo a adaptação”, afirma ao PÚBLICO Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero.
Francisco Ferreira recorda que 2025 será “um ano decisivo”, uma vez que todos os países têm de apresentar planos nacionais de adaptação até ao próximo ano e demonstrar progressos na aplicação do documento até 2030. O investimento na adaptação pode ser alto, mas o custo da inacção climática é muito maior.
“As alterações climáticas já estão a devastar comunidades em todo o mundo, em especial as mais pobres e vulneráveis. Tempestades furiosas estão a arrasar casas, incêndios florestais estão a destruir florestas e a deterioração dos solos e a seca hidrológica estão a degradar as paisagens”, refere Inger Andersen, directora executiva da UNEP, no prefácio do relatório.
O maior aumento, mas que é uma migalha
O documento indica que os fluxos internacionais de apoio à adaptação para os países em desenvolvimento aumentaram de 22 mil milhões de dólares (mais de 20 mil milhões de euros) em 2021 para 28 mil milhões de dólares (25,6 mil milhões de euros) em 2022. Se quisermos ver o copo meio cheio, podemos dizer que este é o maior aumento anual absoluto e relativo desde 2015, quando o famoso Acordo de Paris foi celebrado.
Há, contudo, uma metade do copo completamente vazia: ainda que consigamos alcançar as metas do Pacto Climático de Glasgow, firmadas em 2021 e que consistem em duplicar o financiamento da adaptação para (pelo menos) 38 mil milhões de dólares (quase 34 mil milhões de euros) até 2025, o défice de financiamento da adaptação de entre 187 e 359 mil milhões de dólares (171 a 329 mil milhões de euros) só seria reduzido em cerca de 5%, sublinham os autores do relatório.
“As pessoas, os meios de subsistência e a natureza de que dependem estão em perigo real devido às consequências das alterações climáticas. Sem acção, isto é uma antevisão do que o nosso futuro nos reserva e é por isso que não há desculpa para o mundo não levar a sério a adaptação, já”, recorda Inger Andersen no relatório.
O relatório recebeu este ano o título Come Hell and High Water, uma expressão idiomática que exprime a ideia de determinação, podendo ser traduzido por algo como “faça chuva ou faça sol”. O subtítulo, numa tradução livre, é: “Como os incêndios e as inundações atingem mais duramente os pobres, é tempo de o mundo intensificar as acções de adaptação.”
Ao longo de cinco capítulos e mais de 90 páginas, os autores sublinham a importância de estarmos preparados para os fenómenos climáticos extremos que se avizinham – e essa preparação, em parte, exige adaptação.
Afinal, o que é adaptação?
Quando falamos de adaptação climática, do que é que estamos a falar exactamente? Trata-se do “processo de ajustamento ao clima actual ou previsto e aos seus efeitos”, segundo o relatório.
O exemplo mais simples de adaptação é o do ar condicionado. Se temos uma onda de calor, podemos facultar espaços climatizados a grávidas, pessoas com mais de 65 anos ou com doenças crónicas. Esta adaptação pode reduzir a mortalidade nos dias em que as temperaturas estão muito altas.
Do mesmo modo, existem estratégias e tecnologias adaptativas que podem ser utilizadas na agricultura e na arquitectura, por exemplo. Um solo ressequido pode beneficiar de sistemas avançados de irrigação gota a gota, ao passo que uma casa próxima de zonas inundáveis talvez consiga sobreviver às próximas cheias com a ajuda de estruturas de elevação.
Um outro relatório da UNEP, divulgado na semana passada, mostrava que a Terra pode aquecer até 3,1 graus em 2100 no ritmo actual de emissões. Sabemos que, à medida que a temperatura média do planeta sobe, a crise climática vai provocar fenómenos climáticos extremos mais intensos e frequentes. É por isso que as diferentes nações devem ultimar planos para proteger as populações, em especial os grupos mais vulneráveis.
Já o Adaptation Gap Report 2024 mostra que 171 países possuem hoje pelo menos um documento nacional dedicado à adaptação – ou seja, um instrumento político, seja ele uma estratégia ou um plano. Desses 171, 51% têm ainda um segundo instrumento de adaptação e 20% um terceiro. Por outro lado, há 26 países que não dispõem de um instrumento semelhante. Desses, dez não manifestaram publicamente qualquer intenção de trabalhar nesse sentido.
Dos tais 26 países sem plano de adaptação climática, sete são Estados descritos como “frágeis” ou que estão neste momento envolvidos em conflitos, necessitando, portanto, de um “apoio significativo para que o objectivo de planeamento do Quadro dos Emirados Árabes Unidos para a Resiliência Climática Global seja alcançado até 2030”, refere o documento.
COP29, “uma oportunidade crucial”
Os autores do Adaptation Gap Report 2024 apelam, por isso, à generosidade das nações menos desfavorecidas, pedindo que sejam mais ambiciosas quando se sentarem à mesa de negociações da COP em Bacu, capital do Azerbaijão, e que não se esqueçam da adaptação quando fizerem as suas promessas para a próxima ronda de contribuições nacionalmente determinadas (NDC, na sigla inglesa).
“A COP29 constitui uma oportunidade crucial para se chegar a acordo sobre um aumento significativo do financiamento global para a adaptação e se reforçar a aplicação dos planos nacionais de adaptação, centrando-se na assistência financeira e técnica. Espera-se assim que as partes cheguem a acordo sobre o caminho a seguir, a fim de assegurar a plena operacionalização do Objectivo Global de Adaptação (em inglês, GGA) até 2025”, explica Francisco Ferreira, numa resposta por escrito. E acrescenta: “Até agora, as negociações foram travadas por desacordos, especialmente sobre a questão da incorporação de indicadores sobre a provisão de financiamento pelos países desenvolvidos, e o alinhamento com a formulação e implementação dos planos. Espera-se também que se chegue a um compromisso que permita a incorporação permanente do Objectivo Global de Adaptação na Agenda Climática.”
O ambientalista explica ainda que, no caso de Portugal, a Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas 2020 (ENAAC), agora prorrogada até 31 de Dezembro de 2025, é o instrumento que define objectivos e o modelo para a concretização de soluções para a adaptação de diferentes sectores aos efeitos das alterações climáticas: agricultura, biodiversidade, economia, energia e segurança energética, florestas, saúde humana, segurança de pessoas e bens, transportes, comunicações e zonas costeiras.
“É um documento com dez anos e que não está reflectido ainda de forma alguma no terreno. Por isso, é crucial darmos alguma visibilidade a esta área da adaptação (ou falta dela) durante a COP29”, observa Francisco Ferreira.
Há outros dois assuntos que beneficiariam de visibilidade em Bacu. Um deles é a discussão de quem está, de facto, a pagar a pesada factura da adaptação, um assunto que não tem sido tratado de forma adequada, segundo o relatório da UNEP. Em muitos acordos de financiamento, refere o documento, são os países em desenvolvimento que arcam com os custos, o que até pode ajudar a colmatar o défice de financiamento, mas não segue uma lógica de equidade nem de poluidor-pagador. O outro tópico consiste na importância de novas abordagens e instrumentos financeiros para desbloquear o financiamento da adaptação, tanto para o sector público como para o privado.
Notícia actualizada às 13h27: foi incluída citação de António Guterres