Mesa de mistura usada em Abbey Road, dos Beatles, está à venda
O icónico equipamento de gravação analógica foi totalmente restaurado e testado, meio século depois do seu desmantelamento. O valor no leilão já se aproxima dos três milhões de euros.
Após ter passado por um processo de restauro de cerca de quatro anos, a mesa de mistura EMI TG12345, utilizada durante as gravações de Abbey Road, um dos mais influentes discos dos Beatles, está a ser leiloada. Ao momento, o valor aproxima-se dos três milhões de euros no leilão que decorre no Reverb, um conhecido site de compra e venda de equipamento musical novo e usado.
Não é a primeira vez que este pedaço da história da música foi disponibilizado para venda. No final do ano passado, a mesa de mistura foi leiloada por um preço a começar nos sete dígitos, não tendo encontrado um comprador.
A história deste equipamento de gravação analógica começa precisamente nos Abbey Road Studios, no final dos anos 60 do século XX, como resultado de um esforço colaborativo entre os engenheiros do estúdio londrino e os da editora EMI.
O objectivo era desenvolver uma mesa de mistura que estivesse a par com a então inovadora tecnologia de oito pistas, que permite que sejam gravados ou reproduzidos oito canais de áudio em simultâneo. As consolas REDD (sigla para Recording Engineering Development Department) então presentes no estúdio estavam limitadas ao formato de duas ou quatro pistas.
No início do Verão de 1968, nasce o protótipo da EMI TG12345, que é inicialmente instalado na sala 65 de Abbey Road – uma sala experimental, para que os engenheiros se pudessem habituar a trabalhar com a nova mesa de mistura – e, posteriormente, no célebre Estúdio Dois, onde os Beatles fizeram a sua audição para a EMI e onde registaram a maior parte da sua discografia. Para além das pistas adicionais, este equipamento possuía um novo e mais detalhado sistema de equalização, compressores e limitadores de sinal embutidos.
Foi ainda o primeiro equipamento de gravação a utilizar transístores – tecnologia "solid state" (estado sólido, em português) – para amplificar o sinal de áudio, ao invés de válvulas, mais frágeis e susceptíveis a ruído e distorção indesejada.
Em 1969, é gravado e mixado nesta mesa o álbum homónimo do estúdio e da rua onde este se situa, no noroeste de Londres. Abbey Road foi o ponto final na carreira – tão curta quanto marcante – do quarteto britânico, um dos mais influentes da história da música. Vale relembrar que, apesar de ter sido o último lançamento oficial da banda, o álbum Let It Be foi gravado alguns meses antes das sessões que deram origem a Abbey Road.
Para além de Abbey Road, também os álbuns de estreia a solo dos membros dos Beatles, que se seguiram ao fim da banda, foram gravados utilizando a TG12345, incluindo o aclamado All Things Must Pass, de George Harrison.
Mike Hedges, engenheiro de som e produtor musical, e actual dono da mesa de mistura, trabalhou com ela pela primeira vez em 1979, para gravar partes do álbum Faith, dos The Cure. “Esta mesa era algo como eu nunca tinha visto antes, parecia saído do Star Trek ou algo do género”, explica Mike Hedges num mini-documentário realizado pela Reverb.
Protótipo original
No final dos anos 80, quando os donos do estúdio decidiram retirar a TG12345 do Estúdio Dois para ser substituída por equipamentos mais modernos, a mesa de mistura foi desmantelada. Partes foram transferidas para o sótão do estúdio, outras doadas a uma escola no norte de Londres. Quando deixaram de ser necessárias na escola, foram deitadas ao lixo, mas um técnico de manutenção reparou nelas e decidiu levá-las para casa porque “gostava do aspecto dos botões”, segundo o site dos Abbey Road Studios. Essas peças acabaram, mais tarde, num outro estúdio.
Na mesma altura, de acordo com o site da MJQ (a empresa responsável pelo restauro), os donos do estúdio disseram-lhe que podia ficar com a EMI Mobile, a segunda versão da mesa. Mike, conhecido no estúdio como “Sr. TG”, precisava de peças para fazer algumas reparações nesse equipamento, tendo contactado na altura Brian Gibson e Phil Hancock, os dois engenheiros residentes no estúdio responsáveis pela manutenção das mesas TG, que lhe forneceram “toneladas de peças e partes”.
“Quando juntamos as partes todas, percebemos que tínhamos outra mesa completa, que não dizia ‘versão 2’ nem ‘versão 3’, não dizia nada. Era, na verdade, o protótipo original, a versão 1”, recorda o produtor musical no documentário.
As peças que tinham sido resgatadas da escola foram reunidas com o resto da mesa TG12345, e foi então iniciado o trabalhoso e demorado processo de restauro, pela mão de uma equipa de engenheiros liderada pelo próprio Brian Gibson, que conseguiu reconstruir a mesa de misturaa utilizando 70% das peças originais. Também trabalharam com empresas britânicas, que construíram réplicas fidedignas das peças em falta.
“Se se for um especialista em som e fã de Beatles, e se for ouvir os álbuns da banda, o Abbey Road tem um som diferente, é bastante especial. O que quer que seja que se faça passar por ela, sai a soar melhor”, confessa o actual dono da mesa de gravação no mesmo vídeo, acrescentando que “a EMI a construiu para ser a melhor do mundo, sem preocupações com custos”.
Dave Harries, um engenheiro de som que trabalhou com os Beatles durante muitas sessões de gravação na década de 1960, considera que a mesa desempenhou um papel vital no som e no sucesso do disco: “Abbey Road é um dos melhores álbuns de sempre, e soa tão bem por causa desta mesa de gravação. É única, não é possível substituí-la", relembra no documentário.
A EMI TG12345 encontra-se neste momento totalmente funcional, tendo sido testada e utilizada em estúdio pela primeira vez em 50 anos.
“Os equipamentos musicais são para ser tocados”, afirmou Antoine Bourgougnon, especialista em electrónica vintage da Reverb, em declarações ao diário britânico The Guardian. “É isso que a mesa tem de tão especial – é claro que é um pedaço de história, mas também foi restaurada para estar em perfeitas condições de funcionamento, para que possa continuar a fazer ainda mais música nos próximos anos”, acrescenta.
Texto editado por Maria Paula Barreiros