Paz com a natureza vira indiferença à natureza
A COP16, cimeira da biodiversidade das Nações Unidas, que teve lugar em Cali, Colômbia, terminou a 2 de Novembro, sem avanços e cheia de impasses. As grandes esperanças simbolizadas pelo título da cimeira, “Paz com a Natureza”, e pelo sucesso histórico da COP15 aprovando um Quadro Global de Biodiversidade, elevou a expectativa: era a altura da concretização. No fim, porém, a reunião ficou suspensa na altura da votação sobre o tipo de compromisso que os países deviam assumir para financiar o fundo criado para conservação da biodiversidade. A discussão sobre o financiamento arrastou-se, mas os mecanismos e procedimentos de supervisão ficaram protelados.
A principal resolução sobre o financiamento foi o lançamento da venda de créditos de biodiversidade, à semelhança dos de carbono. Ou seja, o cumprimento das metas 30-30 saídas há dois anos da COP15, ligadas à conservação de áreas protegidas e ao restauro de ecossistemas degradados deixa de estar exclusivamente dependente do financiamento do Fundo Global para a Biodiversidade, e passa a ser partilhado pelas empresas. Diluem-se as responsabilidades por parte dos países signatários. Esta compra de créditos serve para melhorar a reputação das empresas e garantir a continuidade da sua dependência em recursos naturais. O valor resultante da venda é direccionado para projectos de conservação a nível mundial.
Em muitas zonas do globo os ecossistemas, terrestres e marinhos, mostram já vários limites críticos que, associados à alteração climática, podem ser ultrapassados e originar mudanças rápidas e persistentes. Gerir e mitigar com precisão os riscos requer uma mudança fundamental no pensamento sobre o valor da natureza, incluindo a contabilização do capital natural e dos custos da degradação dos ecossistemas no desenvolvimento económico e na qualidade de vida. Restaurar a natureza, conservando e respeitando a biodiversidade são, pois, políticas fundamentais para um futuro ambientalmente saudável e economicamente viável.
A indiferença ante a importância da biodiversidade prende-se com três aspectos fundamentais: não ser visível a relação directa com o poder económico, não afectar (ainda) a saúde pública e estarmos a viver a revolução da tecnologia digital desenvolvida neste século. A fome que grassa não é por falta de produto, antes por poder de compra. A covid 19 surgida devido à promiscuidade entre ecossistema urbano e natural foi demasiado distante, e pouco divulgada. A sociedade actual é dependente do consumo de produtos que lhe possibilita a visualização imediata de realidades diferentes e distantes, à distância de um click.
A lógica do mercado livre e global e as grandes expectativas colocadas nas novas tecnologias deram azo a uma fé inabalável na capacidade de o Homem controlar (também) a natureza. Ainda não se compreendeu que temos muito de estudar para poder respeitar e aprender com a natureza e não para a poder controlar. É a aquisição de um conhecimento em contínuo que deveria ser incentivado, porque nada na natureza é estático. No entanto, no século XXI a justificação para o financiamento é o conhecimento no desenvolvimento de novas ferramentas tecnológicas de maior acessibilidade e de resultados visíveis e imediatos. A lógica do “para que serve”, qual a utilidade “para hoje” está na base da libertação dos recursos financeiros limitados.
Para além do financiamento é, pois, fundamental a definição concreta sobre os instrumentos para classificar o estado de conservação dos ecossistemas e a adopção de métricas comuns para registar e monitorizar de forma rigorosa os impactes das diferentes opções. Sem isso, as boas conclusões saídas das COP mantêm a desconfiança e aumentam as dúvidas e reticências que os países colocam em acções de conservação da biodiversidade e restauro da natureza.
O valor da inacção é incalculável e não é sentido pela sociedade nem pelo poder público, porque ainda não se sentiu nem em casa nem no bolso. Há um contínuo adiar de soluções e olha-se apenas para o que dá lucro directo. Quando as alterações climáticas surgem e afectam as povoações, apenas se avalia a situação do momento e os problemas sociais e económicos que daí advêm. Esquece-se que o mar pode subir e varrer casas onde antes estavam dunas, as chuvas podem acumular-se, porque já não há solo para reter e drenar, o vento e a água arrastam casas e árvores, porque já não há barreiras naturais de mosaicos de vegetação.
Após a COP da biodiversidade, vem a COP do clima que terá muito mais impacto mediático. Ainda não se compreendeu que a crise climática e a perda de biodiversidade são questões que se interpenetram e não faz sentido serem tratadas individualmente. As oportunidades para abordar os dois problemas em conjunto estão cada vez mais limitadas no tempo. Os modelos climáticos mostram que estamos a atingir o ponto de viragem: as actuais tendências de alteração contínua de habitat para exploração agro-florestal ou aproveitamento urbano e o aumento constante das emissões de carbono originaram já aumentos de temperatura de 1,5 °C. Desde 2015, as fontes de energia renováveis são a aposta para limitar a emissão de gases com efeito de estufa. Para além dos projectos de energia fotovoltaica e eólica, o investimento do momento é a exploração do lítio, o novo ouro branco, para fazer face à necessidade de mais e melhores baterias para armazenamento de energia.
A necessidade das energias renováveis e melhores baterias é muito mais fácil de implementar e de justificar do que a acção global para conservar áreas de reserva agrícola ou ecológica que, diz-se, podem ser “colocadas” noutro local. A aposta no retorno económico e a dependência da modernidade digital e electrónica assim o justificam. Por outro lado, a alteração provocada pela exploração mineira é complexa, lenta e, por isso, pouco visível para uma sociedade urbana dependente do consumo eléctrico e electrónico.
A comunicação e o diálogo com o público sobre estes problemas são prementes e requerem estratégias criativas e claras. Daí, a elevada responsabilidade dos media enquanto fornecedores de notícias e dos cientistas enquanto provedores de resultados científicos. Se não o fizermos, é a geração vindoura que pagará caro esta actual indiferença.