Portugal apresenta 63 áreas com risco potencial significativo de inundações, podendo afectar mais de 102.905 habitantes em território continental, de acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). Estas zonas distribuem-se sobretudo ao longo do litoral, sendo o risco de cheias em 47 pontos de origem fluvial e em outros 16 de origem costeira.
“A identificação dessas zonas teve por base a compilação da informação sobre as ocorrências entre 2011 e 2018 e suas consequências, nomeadamente em termos de vidas humanas, em número de desalojados, impactes nas actividades económicas, no património e no ambiente”, refere José Pimenta Machado, presidente da APA, numa publicação na rede social LinkedIn, em que manifesta “solidariedade” com a população afectada pelas cheias em Valência, Espanha, que provocou pelo menos 217 mortos.
O responsável recorda que as ferramentas existentes para reduzir os riscos de cheias nessas áreas – os chamados Planos de Gestão dos Riscos de Inundações (PGRI) – “estão actualizados”. O documento foi aprovado em Conselho de Ministros e publicado a 22 de Abril de 2024. Contudo, para que saia do papel, e proteja de facto pessoas e bens, precisa de ser “vertido para os Instrumentos de Gestão Territorial, especialmente ao nível dos municípios”.
O objectivo é que cada uma das 102 autarquias localizadas em zonas de maior risco possa usar esta ferramenta quando estiver a pensar, ordenar e gerir o território. Este olhar crítico, seguido de acção, deve preceder os fenómenos climáticos extremos – que, com a crise climática, tendem a ser mais frequentes e intensos. Tudo o que vier depois já será reparação e aprendizagem.
Os planos de gestão de risco incluem cerca de 600 medidas que têm como objectivo reduzir os efeitos das inundações na saúde humana, no comércio, no ambiente e no património cultural. Estas medidas subdividem-se em quatro áreas: preparação, prevenção, protecção e, por fim, recuperação e aprendizagem.
A preparação, por exemplo, consiste em avisar e informar a população e os agentes de protecção civil relativamente aos riscos de inundação, recorrendo a sistemas de previsão, alerta e planeamento de emergência e acções de sensibilização pública.
O plano aprovado este ano em Conselho de Ministros traz algumas actualizações em relação ao documento anterior (2016-2021). Foram incluídas as áreas costeiras e foi alargado o critério de área de identificação de zona de risco de inundação, passando a ser considerados os efeitos negativos na saúde humana e no ambiente, por exemplo. Também passou a ser feita uma articulação com Espanha no que toca às áreas de risco partilhadas em bacias internacionais.
Houve gestão de risco em Valência?
No caso recente das cheias em Valência, por exemplo, houve falhas de preparação que poderiam ter poupado vidas. As autoridades locais só enviaram mensagens de alerta por telemóvel às populações locais várias horas após as primeiras inundações e depois da agência meteorológica espanhola lançar um alerta de perigo extremo na região. Em Paiporta, por exemplo, seis idosos foram encontrados mortos num lar, uma vez que os funcionários não terão conseguido transferir os residentes para uma cota superior, à medida que as águas subiam.
“A Agência Estatal de Meteorologia (AEMET) avisou, cinco dias antes das inundações, que se iria registar uma tempestade potencialmente sem precedentes e, 12 horas antes dos avisos públicos do nosso governo local, especificou que a situação se encontrava no mais alto nível de risco. Quando os avisos oficiais chegaram aos telemóveis das pessoas por SMS, nessa noite, muitas casas já estavam debaixo de água. A Universidade de Valência, pelo menos, teve em conta os avisos dos cientistas e disse aos seus estudantes para ficarem em casa nesse dia, salvando quase de certeza muitas vidas”, escreve Juan Bordera, jornalista e político espanhol, num artigo de opinião publicado esta quarta-feira no diário britânico The Guardian.
Juan Bordera, que ocupa um lugar como deputado independente pelo Compromís no parlamento valenciano, garante que o governo regional recebeu todos os avisos possíveis sobre as inundações. O deputado eleito diz que ele próprio tentou avisar directamente os membros do Governo. “Em Setembro de 2023, os membros do Compromís, uma aliança de esquerda no parlamento regional valenciano, apresentaram uma proposta para fazer face aos riscos crescentes de inundações no Mediterrâneo. O governo votou contra”, relata no artigo.
Os riscos eram, de facto, conhecidos pela ciência. “Não era um fenómeno que fosse desconhecido quer pelas comunidades, quer pelos próprios governantes. Já aconteceu noutras alturas e, consequentemente, era expectável que voltasse a acontecer – até porque este ano tínhamos indicação de que a instabilidade atmosférica poderia ser mais activa do que em anos anteriores, uma vez que o mar mediterrânico atingiu temperaturas muitíssimo elevadas”, explicou ao PÚBLICO Maria José Roxo, professora catedrática de Geografia e Planeamento Regional da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, no podcast P24.
A geógrafa explica que, quando temos, por um lado, um mar muito quente, e, por outro, e gotas de ar frio em alta altitude, cria-se um mecanismo de compensação, uma dinâmica que vem associada a uma grande instabilidade atmosférica e grandes quantidades e precipitação em poucas horas. Trata-se de um fenómeno conhecido por “gota fria” ou o termo científico espanhol depresión aislada en niveles altos, que se resume no acrónimo DANA.
De acordo com os meteorologistas espanhóis, citados pela Reuters, choveu em apenas oito horas o equivalente à média de mililitros de precipitação registada ao longo de um ano inteiro em várias localidades da região. Se esta água toda que cai do céu não é absorvida pelo solo, ou acomodada em segurança em bacias de retenção, então ela terá de ser canalizada para algum sítio das zonas mais baixas do território, avisa Maria José Roxo, que pensa ter havido problemas de prevenção na tragédia em Valência.
A prevenção, nos planos de gestão de risco, debruça-se sobre políticas de ordenamento do território que ajudem a mitigar os efeitos das cheias, incluindo acções de fiscalização, de relocalização de infra-estruturas e de compreensão dos fenómenos das inundações.
“A questão do planeamento e do ordenamento urbano é aqui completamente decisiva no que aconteceu. Há muitas imagens em que nós podemos ver que os rios foram confinados; antes de chegarem às povoações há vales muito largos, mas depois quando os rios entram nas povoações eles são canalizados para dimensões muito pequenas. O que nós temos é a associação da força da natureza – conhecida por todos – e da incompetência humana de pensar que consegue dominar estes elementos”, alerta a professora catedrática.