Zoya Miari é palestino-ucraniana. Entre duas guerras, quer acabar com “o ciclo de violência”
Cresceu num campo de refugiados no Líbano e foi para a Ucrânia antes de começar a guerra. Ser refugiada ucraniana e palestiniana mostrou-lhe duas realidades diferentes: “Há um racismo muito profundo.”
No dia antes de começar a guerra na Ucrânia, Zoya Miari e a irmã viram o filme da história de Anne Frank. Foi quase premonitório. A sua irmã chorava e perguntava “e se a guerra começa aqui?”
E a guerra começou mesmo.
Foi assim que, em Fevereiro de 2022, começou também a mesma história pela segunda vez. Zoya, 25 anos, e a família voltaram a fazer as malas e a procurar casa noutro país. Já o tinham feito um ano antes, quando deixaram o campo de refugiados onde viveram a vida toda, no Líbano, como refugiados palestinianos.
Filha de mãe ucraniana e pai palestiniano, a identidade de Zoya torna-a também filha de duas guerras. E trouxe-lhe diferenças no estatuto: é diferente ser uma refugiada palestiniana e uma refugiada ucraniana. “No Líbano, onde cresci e estudei enfermagem, não consegui arranjar emprego porque há mais de 70 profissões que os palestinianos não podem ter. Enquanto refugiada ucraniana na Europa consegui, em dez dias, um estado que me trata como um ser humano”, conta.
Mas vamos ao início. Em 1948, durante o Nakba, ou a “catástrofe”, 700 mil palestinianos foram forçados a deixar as suas casas e terras. O avô de Zoya foi um deles. Fugiu para o Líbano e nunca mais lhe foi permitido regressar. Foi num dos maiores campos de refugiados do país que viveu, onde nasceu o pai de Zoya e, depois, Zoya e os cinco irmãos.
“Como palestiniana apátrida nunca pude ir à Palestina. Vivi no campo de refugiados até aos 15 anos. O campo era sobrepopulado, e estávamos sempre a ouvir tiros, bombardeamentos, explosões. Isso era uma parte normal do nosso dia-a-dia, era a minha realidade”, relata, a partir de Zurique, onde agora vive.
Em 2006, quando a guerra entre o Líbano e Israel começou, pôs, finalmente, os pés num sítio onde havia paz. “A Ucrânia era o nosso sítio seguro. Quando algo acontecia no Líbano, íamos para a Ucrânia. O meu pai ficava para trás, porque não tem nacionalidade ucraniana.”
Dois anos depois, regressou ao Líbano, e foi nessa altura que começou a ganhar consciência de quem era, da sua história e da sua herança. A escola americana fora do campo onde andou era frequentada por estudantes libaneses e palestinianos – “mas nenhum deles morava num campo de refugiados”. E esse foi o seu segredo durante anos.
“Tinha vergonha de dizer que vivia num quarto com toda a minha família, num campo de refugiados. Até 2015, quando um conflito reduziu a nossa casa a cinzas. Perdemos tudo e fomos viver para fora do campo”, recorda. Foi então que começou a contar aos amigos como era a sua vida até ali.
A explosão no porto de Beirute, em 2020, que matou mais de 200 pessoas e feriu mais de 6500, foi o “momento decisivo” para que, uma vez mais, Zoya e a família fizessem as malas e rumassem à Ucrânia. Desta vez, “definitivamente”.
Mas o destino que anteriormente era sinónimo de segurança deixou de o ser naquele 22 de Fevereiro de 2022, “seis ou sete meses” depois da mudança da família. “Foi chocante. [O início da guerra] significava que eu ia ser uma vítima, uma refugiada, pela segunda vez. No comboio, sentada com os outros refugiados, a minha mãe disse-me que tínhamos de cantar. Nesse momento senti-me com medo, mas também livre. E decidi que se saísse da Ucrânia viva, que me ia recusar a ser uma vítima de novo, e que ia usar a minha história para mostrar às pessoas quem nós somos de facto.”
Activismo pela paz
Foi esta a história que trouxe Zoya até à Suíça, onde vive actualmente com a sua família — incluindo o pai, que há três semanas se conseguiu juntar a eles. “Quando a minha mãe me disse para escolher o país onde queríamos viver, literalmente fui ao Google pesquisar ‘países mais seguros do mundo’, e foi assim que escolhi”, ri.
Tornou-se Embaixadora da Paz da One Young World, uma comunidade global para jovens líderes, e dedica-se a contar a sua história ao mundo, ao mesmo tempo que está a estudar Psicologia e a trabalhar no seu livro autobiográfico.
O seu objectivo é “lembrar ao mundo para não olhar o outro como alguém que tem ou não um determinado documento, ou pelas cores dos seus olhos”, como lamentou ter sido mencionado em muitas peças jornalísticas sobre refugiados ucranianos. “Desde quando é que diferenciamos pessoas pelas cores dos olhos? Há um racismo muito profundo.”
Para conseguir essa mensagem de paz, é preciso compreender o que acontece e aconteceu no mundo. Na Polónia, onde foi temporariamente acolhida por uma família, descobriu que estava a viver a cinco minutos de Auschwitz. “Quando me mudei para a Ucrânia, fui a vários museus relacionados com sítios onde judeus foram mortos e senti-me muito aterrorizada e empática com esta realidade. Como é que a Europa simplesmente fez de conta que não viu o que estava a acontecer?”
Ir a Auschwitz era, por isso, necessário. Só entendendo os ciclos de violência se pode acabar com eles. “O ciclo de violência que acontece na Palestina não começou connosco. Começou com os europeus a odiarem os judeus. E senti a necessidade de entender de onde vinha a dor original, porque se queremos acabar com certos ciclos, temos de perceber a raiz do problema.”
Ao olhar para as fotos de crianças, questionou-se como o mundo “permitiu que aquele genocídio acontecesse”. Ali estavam sonhos e histórias, os mesmos que existem nas crianças de Gaza: “Vai chegar o dia em que vão fazer um museu como este para Gaza”, pensou. E “que tipo de propaganda tornou isto possível?”
Mas “que tipo de propaganda torna possível o que está a acontecer em Gaza neste momento”? “É definitivamente o enviesamento dos media e a desumanização dos palestinianos”, considera. “Dizem que há uma guerra entre dois lados, mas não há qualquer guerra entre opressor e oprimido, entre ocupador e ocupado. Depois, a associação que fazem dos palestinianos ao terrorismo. Este tipo de linguagem não começou hoje. Desde que era criança, lembro-me de que, sempre que algo acontecia em Gaza e tentávamos alertar o mundo, ninguém nos ouvia.”
Zoya sorri. “Isso está a mudar. Infelizmente foram precisos milhares de mortes de palestinianos para isso acontecer, mas o mundo acordou”, acredita. A interseccionalidade de lutas, do Black Lives Matter à Palestina Livre, têm criado um mundo “pró-verdade”, onde “as pessoas lutam por um mundo mais justo”. “As nossas lutas estão todas ligadas.”
O livro The Choice, da sobrevivente do Holocausto Edith Eger, mostrou a Zoya que “temos a escolha de olhar para as nossas histórias e não nos vermos como vítimas, mas como lutadores”. “E isso deu-me força para falar com os meus amigos em Gaza. Estou a usar a mensagem de uma sobrevivente do Holocausto para apoiar quem está em Gaza. O mundo quer que isto pareça uma guerra entre muçulmanos e judeus, mas este problema começou com europeus, com o que fizeram aos judeus. E o sionismo aproveita-se dessa dor. Mas o processo de cura começa também comigo, com a minha conexão com os sobreviventes do Holocausto e contra todas as formas de colonialismo.”
O Ocidente, aponta, “tem-nos ensinado sobre direitos humanos e descolonização, mas isso não está a ser aplicado”. “É criado pelo Ocidente para o Ocidente.” Está na altura de “boicotar Israel e parar de enviar armas”, defende. “É preciso responsabilizar [Israel].”
“Há muito trauma” a ser curado, aponta Zoya. “Num dia destes, estava a falar com uma colega e perguntei-lhe como é que ela estava. Respondeu-me que a casa da tia tinha sido bombardeada, com toda a família lá. Contou-me isto a sorrir, para esconder o trauma. Noutro dia, abri o Instagram e vi que a família de um amigo meu foi morta. Há muito trauma para compreender. Às vezes ainda parece um sonho. Mas não é, está mesmo a acontecer.”