MP reitera fraude na obtenção de subsídios para kits das golas

José Artur Neves é um dos 19 arguidos no julgamento, entre os quais se encontra o ex-presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil, general Mourato Nunes. Aponta erro à acusação.

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José Artur Neves, foi secretário de Estado da Protecção Civil Nuno Ferreira Santos (arquivo)
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O Ministério Público (MP) reiterou esta segunda-feira que houve ocultação de procedimentos e fraude na obtenção de subsídios para os kits de protecção do projecto Aldeia Segura, enquanto os arguidos reclamaram inocência na primeira sessão do julgamento do processo das golas antifumo.

No arranque do julgamento no Juízo Central Criminal de Lisboa, a procuradora Angelina Freitas sublinhou a intenção do MP em "provar todos os factos da acusação", assinalando que a adjudicação das golas e dos kits para a empresa Foxtrot estava já decidida "antes mesmo do concurso", sabendo os arguidos que esta companhia "não tinha experiência" para esta prestação de serviços.

"Em causa estão cinco projectos promovidos pela Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC) na sequência dos incêndios de Pedrógão Grande e que se candidataram a fundos da União Europeia. Em três desses projectos, a ANEPC já tinha iniciado os procedimentos de contratação pública", frisou a magistrada, destacando que estes procedimentos foram "ocultados" nas candidaturas aos fundos comunitários.

A defesa do ex-secretário de Estado da Protecção Civil José Artur Neves, a cargo da advogada Rita Castanheira Neves, realçou a referência à ocultação de procedimentos por parte do MP, mas referiu a ausência de menções a quaisquer "relações privilegiadas" entre os arguidos, considerando que essa tese era "o substrato que deu início a este processo", e negou qualquer favorecimento pessoal. "Não houve um 'levar ao colo' destas empresas e não houve abuso de funções. Há um contexto que tem de ser demonstrado, mas não é em tónica de desculpa. Ainda nesse quadro, o que os arguidos fizeram foi procurar a melhor solução", disse a mandatária, aludindo a um contexto pós-incêndios de Pedrógão Grande.

A defesa do general Mourato Nunes, ex-presidente da ANEPC, enfatizou o desconhecimento em relação às entidades que seriam envolvidas na adjudicação dos kits de autoprotecção Aldeia Segura, refutou qualquer vantagem pessoal e adiantou que o arguido transmitiu as informações para a obtenção de fundos comunitários na convicção de que eram verdadeiras. "A ideia do MP é que haveria escolhas predeterminadas. Vamos demonstrar que a lei permitia o ajuste directo e o arguido teve a preocupação de fazer consultas prévias. Quando tomou posse, já havia trabalho feito ao nível do gabinete do secretário de Estado [da Protecção Civil], mas não deixou de haver uma consulta ao mercado", disse o advogado José António Barreiros.

As defesas dos outros arguidos subscreveram a ausência de ilícitos nas práticas dos seus clientes e defenderam a absolvição, lembrando o contexto que se seguiu aos grandes incêndios de Pedrógão Grande e criticando a interpretação do MP sobre os procedimentos de contratação pública para este caso e as finalidades das golas antifumo. Os dois principais arguidos do processo das golas antifumo já manifestaram em tribunal a vontade de prestar declarações, tal como os restantes acusados.

Artur Neves aponta erro com SMS

O ex-secretário de Estado da Protecção Civil José Artur Neves defendeu esta segunda-feira a existência de um erro da acusação no processo das golas, com uma confusão a propósito de uma troca de mensagens telefónicas sobre os "kits" de protecção.

Segundo o ex-governante, o Ministério Público (MP) alegou uma suposta proximidade com a mulher do responsável pela empresa que viria a fornecer os "kits" no projecto Aldeia Segura, chamada Isilda Gomes, que era em 2018 presidente da junta de freguesia de Longos (concelho de Guimarães).

Porém, José Artur Neves explicou que a troca de mensagens tinha ocorrido com a então presidente da Câmara de Portimão e actual eurodeputada, Isilda Gomes.

"O primeiro choque foi quando fui constituído arguido e o segundo choque que tive foi com a acusação e uma suposta relação com a mulher do empresário dos "kits". Pensei 'Será que essa senhora me enviou alguma mensagem?'", contou o ex-governante nas declarações prestadas na primeira sessão do julgamento no Juízo Central Criminal de Lisboa.

José Artur Neves disse que foi à procura do contacto da Isilda Gomes que presidia à junta de freguesia de Longos (PS), questionando se tinha enviado alguma mensagem, ao que a visada respondeu que nunca tinha mandado mensagem e que só tinham estado juntos num evento, mas sem falarem.

"Eu nunca me filiei no PS, sempre fui independente. O telemóvel que me mandou a mensagem era da senhora vice-presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, Isilda Gomes (à data presidente da CM Portimão), e isto foi esclarecido na fase de instrução, ao ponto de o procurador dizer que não encontrava nada que me ligasse aos concursos. O certo é que não resultou em nada e aqui estou", resumiu.

Sobre os procedimentos, refutou qualquer conluio e reiterou que apenas autorizou a Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC) a fazer despesa e que os valores das propostas adjudicadas ficaram abaixo dos preços fixados.

Enfatizou ainda não ter dado qualquer indicação ao então presidente da ANEPC, general Mourato Nunes, sobre a escolha das empresas.

O ex-governante destacou que as golas nunca foram um equipamento de protecção contra incêndios e criticou a forma como a comunicação social abordou o tema, após a difusão de imagens das golas a arder com a chama de um isqueiro.

"É uma imagem brutal. Tentei falar com o ministro e a assessora de imprensa porque percebi que tínhamos ali um problema brutal... Tínhamos de explicar que aquela gola não era um equipamento de protecção de incêndio. Era um escândalo pôr os cidadãos das aldeias a combater incêndios. A gola era um ensinamento, um exemplo que queríamos transmitir aos cidadãos de que deviam ter os "kits" e as golas para se protegerem", frisou.

José Artur Neves admitiu que, face à polémica desse caso, o então ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, "amplificou o problema", ao irritar-se com questões de jornalistas e apontar que as esponjas de protecção dos microfones também iriam arder.

Antes do arranque do julgamento, José Artur Neves, garantiu estar de "consciência tranquila" e lamentou que o projecto Aldeia Segura não tenha tido o seguimento desejado.

Em declarações aos jornalistas à entrada para o tribunal, o antigo governante, que acabou por se demitir em 2019 na sequência da revelação deste caso, manifestou a convicção de que o processo "seguramente será bem julgado", assegurando ainda que a investigação do MP será "obviamente contestada" no tribunal, face às imputações de fraude na obtenção de subsídio e participação económica em negócio.

"A minha contestação é muito clara. O processo terá o julgamento que tiver de ser, estou mais do que sossegado e de consciência bem tranquila. O que me preocupa é a questão política, porque eu fui criado numa aldeia, combati fogo quando era miúdo", referiu.

José Artur Neves defendeu que o projecto Aldeia Segura, ao abrigo do qual foram contratualizados os kits de autoprotecção, "foi, seguramente, o melhor projecto de protecção das vidas das pessoas nas aldeias" e considerou que devia ter tido outro desenvolvimento, depois da sua criação na sequência dos incêndios de Pedrógão Grande.

"Era um projecto que estava a ser bem executado. Não tem nada a ver com isto, que é outra coisa... O que me entristece é que depois deste processo o Aldeia Segura não tivesse tido o desenvolvimento que nós desejávamos, que era absolutamente fundamental para proteger a vida das pessoas", sustentou, resumindo: "É necessário elevar uma cultura de segurança nas aldeias. Todos já se esqueceram que em 2017 morreram 116 pessoas."

Em causa neste processo estão alegados crimes de fraude na obtenção de subsídio, participação económica em negócio e abuso de poder, relacionados com a contratação pública e compra de golas de autoprotecção no programa Aldeia Segura – Pessoas Seguras, lançado na sequência dos incêndios florestais de 2017.

Entre os 19 arguidos (14 pessoas e cinco empresas) estão o ex-secretário de Estado da Protecção Civil, José Artur Neves, e o ex-presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Protecção Civil (ANEPC), general Carlos Mourato Nunes.

O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) enviou em Janeiro passado todos os arguidos para julgamento, ao validar na íntegra a acusação do MP.

A acusação foi revelada pelo MP em Julho de 2022, após a investigação identificar "ilegalidades com relevo criminal em vários procedimentos de contratação pública" no âmbito do programa Aldeia Segura – Pessoas Seguras, que foi co-financiado pelo Fundo de Coesão, considerando que causou prejuízos para o Estado no valor de 364.980 euros, supostamente desviados a favor dos arguidos.

Texto actualizado às 19h49 com as declarações de José Artur Neves em tribunal