Desigualdade social torna câncer de mama mais letal no Brasil que em Portugal

Em Portugal, mulheres entre 50 e 69 anos são convocadas pelo sistema público de saúde para fazer mamografia, no Brasil, é preciso entrar na fila para consulta para, então, o médico requerer o exame.

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No Brasil, quanto mais pobres forem as mulheres, menores são as chances de tratamento contra o câncer de mama Rui Gaudêncio
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A desigualdade social se transformou em uma arma letal para as mulheres que têm câncer de mama no Brasil. Segundo o mastologista Júlio Caldas, que está há sete anos em Portugal e se tornou uma referência no tratamento da doença entre as imigrantes, quem depende unicamente da saúde pública brasileira tem mais chances de morrer da enfermidade do que a pessoa que recorre ao sistema privado. “O Brasil perde mais mulheres para o câncer do que se o atendimento na saúde fosse diferente. Isso é devastador”, afirma.

O médico lista uma série de fatores para justificar a trágica realidade. Enquanto, em Portugal, o Sistema Nacional de Saúde (SNS) toma a iniciativa de convocar as mulheres para fazer, periodicamente, os exames para detecção do câncer de mama, no Brasil, a iniciativa tem de partir das mulheres. Elas precisam pedir uma consulta no Sistema Único de Saúde (SUS) para, então, o médico requerer a mamografia.

Mas não é só. Depois de feito o exame, se for detectado algo de anormal, as mulheres entram em uma fila para fazer a biopsia, o que leva mais tempo. “Por conta desse tempo, aquelas que estiverem com tumores mais avançados têm mais chances de morrer. Esse quadro é ainda mais preocupante entre as mulheres negras, mais propensas à pobreza e em cujo grupo é mais comum os subtipos de tumores mais agressivos”, assinala.

Caldas faz uma comparação com Portugal para mostrar o quanto as mulheres brasileiras são vítimas das condições sociais. Em média, 70% das portuguesas entre 50 e 69 anos são rastreadas pelo sistema de saúde. Entre as brasileiras que dependem do SUS, esse rastreio fica entre 30% e 40%. Já entre as cidadãs que têm planos de saúde, a rastreabilidade é de 70%. “Isso quer dizer que três, no máximo quatro, das brasileiras de baixa renda são acompanhadas sistematicamente pela saúde pública para a detecção de câncer de mama”, frisa.

Em Portugal, detalha o mastologista, se uma mulher que faz o rastreio da doença dentro do que é preconizado pelo Governo e, na mamografia, nota-se alguma alteração, o próprio sistema, por meio da Liga Portuguesa Contra o Cancro, avisa às instituições de saúde que o resultado do exame mostrou alteração. Essa mulher é imediatamente encaminhada para um serviço de referência. “Ou seja, em Portugal, as mulheres são convocadas para fazer os exames periódicos, a cada dois anos, no Brasil, as mulheres dependem de uma requisição médica para fazer a mamografia”, reforça.

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O mastologista Júlio Caldas atende muitas mulheres imigrantes com câncer de mama. Ele alerta que, quanto mais rápido for o diagnóstico, maior será a chance de cura Arquivo pessoal

Rapidez é vida

Pelas projeções do Instituto Nacional do Câncer (Inca), neste ano, quase 74 mil mulheres serão diagnosticadas com câncer de mama no Brasil. Em Portugal, pelos cálculos do Ministério da Saúde, os casos da doença devem ficar, no mesmo período, entre 7 mil e 9 mil. São números elevados, reconhece Caldas. “Por isso, mais do que nunca, a rapidez da detecção é fundamental. Quando mais cedo o tumor for diagnosticado, maiores serão as chances de vida e menos pesados serão os tratamentos”, ressalta.

O médico complementa: “A depender da etapa em que a mulher é diagnosticada, ela pode ser poupada da quimioterapia. Agora, se essa mulher chega com um tumor avançado, fica difícil evitar os tratamentos, que são muito pesados, e os índices de sucesso são menores”. Para ele, infelizmente, a dificuldade do diagnóstico no Brasil empurra as mulheres com câncer de mama para mais perto da mortalidade.

“O mais trágico é que o país tem mamógrafos em quantidade suficiente para atender todas as mulheres, contudo, como muitas sequer conseguem consultas para pedir o exame, os aparelhos ficam sem o uso adequado. Esse é o retrato do mau funcionamento do sistema público de saúde, situação agravada pela desigualdade social”, diz o mastologista. “Estamos diante de um quadro dramático, em que a mortalidade tende a ser maior”, emenda.

Caldas lembra, ainda, que há uma diferença entre o que as sociedades médicas pregam para se fazer o rastreio do câncer de mama entre as mulheres e o que os governos executam. Tanto no Brasil quanto em Portugal, o recomendado pelos sistemas públicos de saúde é que as mamografias sejam feitas em mulheres entre 50 e 69 anos, a cada dois anos. Já as sociedades médicas preconizam que o rastreio deve começar aos 40 anos, com exames anuais, no máximo, de dois em dois anos.

Ele ressalta que a posição das sociedades médicas se baseia no grande percentual de mulheres abaixo de 50 anos com câncer de mama. “O conselho que damos para as mulheres é que façam a mamografia periodicamente e que, ao menor sinal de algo que possa resultar num tumor, procure um médico. Não espere, pois, com o acompanhamento de um profissional, tudo fica mais fácil. Há 100 anos, não ir ao médico, em caso de câncer de mama, não fazia muita diferença, pois os tratamentos ainda eram incipientes. Hoje, a rapidez no diagnóstico é fundamental”, enfatiza.

O médico, que nasceu em Fortaleza, Ceará, afirma que a palavra câncer não pode mais ser carregada de estigma. “Independentemente da condição social e do nível educacional, ainda há muitas mulheres que adiam ao máximo fazer exames e a procurar tratamento. Quando chegam aos consultórios, a situação é grave. Não se pode ficar esperando em casa o tempo passar. O câncer de mama mata”, avisa.

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