Acordo sobre transvases no Guadiana não deixou ninguém satisfeito. Nem em Portugal, nem em Espanha

Associações de regantes portuguesas consideram que Alqueva não suporta mais captações. Em Espanha, as associações querem mais água e olham para o novo acordo como uma “solução diabólica”.

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Barragem de Alqueva garante o abastecimento de água a 13 concelhos alentejanos Nuno Ferreira Santos
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No rescaldo da recente cimeira luso-espanhola, realizada no passado dia 23 de Outubro, em Faro, as principais organizações de regantes portuguesas e espanholas estão a reagir com uma evidente insatisfação ao que ficou acordado para o novo regime de caudais no rio Guadiana.

Enquanto as organizações portuguesas reclamam mais informação sobre o acordo, as associações de regantes da região espanhola de Huelva interpretam o acordo como um retrocesso no que diz respeito aos volumes de água que vão continuar a ser captados no sistema Boca-Chança, junto à aldeia de Pomarão, no concelho de Mértola. Para este local também está prevista a instalação de um sistema de captação de água destinada ao Algarve.

O PÚBLICO solicitou esclarecimentos ao Ministério do Ambiente e Energia sobre o novo regime de caudais aprovado para o rio Guadiana.

O ministério esclareceu que os dois países “acordaram na captação de água para o reforço do abastecimento de água ao Algarve e a Huelva de um volume anual máximo de 30 hm3 (anos secos), que pode ser ampliado até aos 60 hm3 (anos intermédios)”, e em anos húmidos, quando ocorram caudais muito elevados, “são autorizadas captações acima daquele volume”.

Os caudais serão equitativos para os dois destinos. Contudo, a água que venha a ser bombeada para Huelva e para o Algarve não poderá prejudicar a realização da operação de libertação dos caudais de cheia, para cumprimento do regime de caudais ecológicos.

Dados do ministério

Assim, em anos não secos (definidos pela precipitação de referência à data de 31 de Janeiro) “deve promover-se a descarga contínua de caudais de valor igual ou superior a 300 m3/s durante dois dias no mês de Fevereiro, correspondendo a um volume de 45,8 hm3, caso não tenham ocorrido desde o início de Novembro afluências desta ordem de grandeza na secção do Pulo do Lobo”, salienta a informação enviada ao PÚBLICO do ministério.

A ocorrência destes caudais de cheia pretende garantir o regresso ao Guadiana de espécies migradoras que vêm do mar para o rio para se reproduzirem, como, por exemplo, lampreias, enguias-de-vidro, sável, savelha e barbo. O acordo da cimeira de Faro justifica a realização deste tipo de descargas com a necessidade de travar a cunha salina e ao mesmo tempo propiciar o arrasto de nutrientes ao longo do rio até ao estuário, para alimentação de espécies aquáticas e marinhas.

Nos anos secos, o regime de caudais definido para a secção de Pomarão apenas assegurará 50% das necessidades das captações de Pomarão e Boca-Chança. E sempre que o volume total da albufeira do Alqueva seja igual ou inferior a 2500 hm3 é declarada situação de excepção e apenas é garantido o correspondente regime de caudais ecológicos definido por Portugal para esta secção (2m3/s).

Quanto à captação que as autoridades espanholas instalaram nos anos 70 do século passado, no ponto da confluência entre os rios Chança e Guadiana, identificado por Boca-Chança, esta “não pode comprometer o regime de caudais definido para a secção de Pomarão” para onde está prevista a instalação de um novo sistema de captação de água para o Algarve. As captações de Pomarão e de Boca-Chança apenas podem funcionar entre os meses de Outubro e Abril de cada ano.

A definição de caudais acordada na cimeira inclui o regime de caudais ecológicos estabelecido por Portugal em 2005 para secção de Pomarão (60 hm3), acrescido do volume a garantir para utilizações socioeconómicas (rega, turismo e consumo humano), que poderá atingir em anos hidrologicamente mais favoráveis um valor máximo de 90 hm3. Em média, entram em Alqueva cerca de 2000 hm3 anuais, lançados a partir do açude instalado no Guadiana, na cidade de Badajoz.

Informados pelas notícias

Acordado pelas partes o novo regime de caudais do Guadiana, verifica-se que as organizações de regantes espanholas da região de Huelva estão devidamente informadas dos pormenores do acordo estabelecido, enquanto as associações de regantes portuguesas, contactadas pelo PÚBLICO, dizem que só conhecem as informações publicadas “nas notícias”.

O desabafo de José Núncio, presidente da Federação Nacional dos Regantes de Portugal (Fenareg), é elucidativo: “Estou sem saber o que foi acordado, as minhas dúvidas subsistem sobre os caudais do Guadiana” a enviar para território espanhol e para a região algarvia.

E porque não conseguia recolher informação adequada em Portugal, o presidente da Fenareg socorreu-se de algumas dicas que colegas espanhóis ligados ao regadio lhe adiantaram. “Confesso que não percebi, falaram-me de um transvase que podia chegar aos 100 hm3.”

E resume: “Não estou esclarecido nem ficou claro quais foram os nossos ganhos neste acordo com Espanha. Os comunicados tornados públicos deviam ser mais concretos sobre o que foi efectivamente acordado.” José Núncio assume o seu cepticismo: “Tenho dúvidas de que este acordo seja um grande passo” no sentido de solucionar um contencioso de décadas à volta das captações ilegais efectuadas pelas autoridades espanholas na confluência dos rios Chança com o Guadiana no Pomarão.

Ainda mais lacónico foi o comentário de Rui Garrido, presidente da ACOS – Associação de Agricultores do Sul. “Só sei o que saiu nas notícias. Por isso, espero que na reunião que vamos ter com o ministro da Agricultura, no próximo dia 4 de Dezembro, fique a saber o que se passa e o que, afinal, foi acordado.”

Estabelecido o acordo sobre os transvases a efectuar no Pomarão, João Luís Rodrigues, presidente da Associação de Proprietários e Beneficiários de Alqueva (APBA), diz também que apenas conhece o conteúdo aprovado através do “que foi veiculado pela comunicação social”. Mas, apesar da escassez de informação, os dados a que teve acesso deixam este responsável “bastante preocupado” pelo crescente aumento das solicitações que são feitas da água de Alqueva.

Faz-se contas à água. Somam-se os volumes de água que passarão a ser enviados para Huelva e Algarve ao transvase para a barragem de Monte da Rocha, já em execução, acrescidos da medida que a ministra do Ambiente e Energia acaba de anunciar referente ao fornecimento de água à barragem de Santa Clara, para irrigar as framboesas, as amoras e os mirtilos no perímetro de rega do Mira. Há ainda que contar com o que os regantes espanhóis vão captar directamente da albufeira de Alqueva.

“Temos de pensar em trazer para o Sul água do Norte do país”, propõe o presidente da APBA. “Temo que dentro de pouco tempo as reservas existentes não cheguem para todas as solicitações.” E mesmo na situação presente, em que se continua a assistir à expansão do regadio nos Empreendimentos de Fins Múltiplos de Alqueva (EFMA) e nos perímetros de rega confinantes, “pergunto que condições existem em Alqueva para o projecto dar conta do recado”, questiona Luís Rodrigues.

Corte de água em 27 explorações de Alqueva

O dirigente associativo realça uma das consequências que já se fizeram sentir. “Neste momento, estamos a suportar restrições na rega que não são as melhores para a eficiência hídrica.” Dado o volume de solicitações, que se traduzem na utilização em quase 100% da área de rega de Alqueva, acrescido de quase 20 mil hectares de regantes precários (com explorações fora do EFMA), a Empresa de Desenvolvimento e Infra-estruturas de Alqueva (EDIA) passou a aplicar um plano anual de utilização de água, para garantir o seu uso “sustentável”.

Deste modo, a inscrição anual de cada utilizador, num dado bloco de rega, registará qual a área regada por cultura, dentro da área beneficiada ou regada a título precário, a sua idade (da cultura) e pontos de entrega de água (hidrante e boca de rega). É ainda verificada, para cada inscrição, a existência de eventuais áreas regadas sem autorização da EDIA.

A partir da posse destes dados, é calculado o volume máximo anual atribuído a cada inscrição, com base nas dotações de rega estabelecidas pela EDIA, mas há agricultores que acabam por exceder os volumes acordados, alegando que os volumes atribuídos não chegam para garantir a sustentabilidade das produções, sobretudo das culturas permanentes (olival, amendoal, vinha).

A EDIA explicou ao PÚBLICO que avisa os agricultores quando estes já consumiram 80% da dotação atribuída e procede ao corte quando consomem o total do volume de água atribuído. Neste momento o corte atingiu 27 explorações agrícolas. A ACOS contestou esta medida junto do ministro da Agricultura, alegando que se trata de um assunto “muito sensível, que pode ter repercussões económicas graves e que carece de adequada ponderação”.

Pressão das explorações precárias

O PÚBLICO questionou o presidente da EDIA, José Pedro Salema, sobre a movimentação dos agricultores em protesto contra os cortes de água, que refuta as críticas formuladas à actuação da empresa gestora de Alqueva. Este responsável alega que “há muitos interesses particulares em jogo” de alguns agricultores que exploraram áreas dentro dos perímetros de rega do EFMA, mas que acabam por estender as suas culturas para áreas adjacentes onde não lhes é permitido regar com água de Alqueva. Neste momento, a empresa já fornece água a cerca de 20 mil hectares de agricultores na condição de precários.

Salema admite que as pressões dos agricultores “têm origem nas explorações precárias” que continuam a crescer na periferia dos blocos de rega de Alqueva, justificando as restrições impostas, “porque a água é um bem finito”. As reacções expressas, nomeadamente no comunicado da ACOS, “revelam exigências que não será possível satisfazer”, reconhece o presidente da EDIA.

Uma solução diabólica

Os sinais de preocupação pelos condicionalismos impostos no acesso à água, patentes nos agricultores portugueses, são extensivos aos regantes espanhóis.

Uma nota divulgada pela organização Huelva Riega, que congrega 13 associações de regantes da região espanhola de Huelva, define o novo regime de caudais do Guadiana acordado na cimeira luso-espanhola como “uma solução diabólica” e queixa-se que os volumes estabelecidos são “insuficientes” para satisfazer as necessidades para rega, indústria mineira, turismo e consumo humano. “A sociedade de Huelva necessita de bombeamento de Boca-Chança I e II (75 e 150 hm3, respectivamente por ano), do canal Trigueros e de obras de ampliação do túnel San Silvestre”, que vão arrancar no início do próximo ano, reivindica a Huelva Riega.

Por sua vez, um comunicado do Ministério da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico, datado de 25 de Outubro, refere que o regime de caudais acordado para o Guadiana “inclui o regime de caudal ecológico, acrescido do volume necessário para garantir os usos socioeconómicos, que chega a 90 hm3, distribuídos em 60 hm3 para Espanha e 30 hm3 para Portugal”, valores que divergem dos que foram anunciados pelo Ministério do Ambiente e Energia.