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A língua portuguesa como política pública
Talvez se tenha tornado um traço de nossa cultura: deixamos o português solto. Temos dificuldades com as regras.
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A relação do brasileiro com a língua portuguesa é complexa. Ou, como brincamos, “deveria ser estudada pela NASA”. De um modo geral, a língua portuguesa é e não é sentida como “nossa”. É a língua pela qual nos comunicamos, amamos, realizamos a nossa vida, somos quem somos, mas é também uma língua de fora que, para muitos, descendentes de imigrantes ou de escravizados, soa como uma realidade aleatória em suas vidas. Isso traz um problema a mais à sua escolarização.
O português brasileiro é plural e, por vezes, rebelde, nega-se a ser domesticado. Curiosamente, é, ao mesmo tempo, conservador e aceita bem novas palavras e muito mal mudanças sintáticas. As razões são muitas. Ocorre-me, por exemplo, que há uns 100 anos, por volta de 1920, na cidade de São Paulo, apenas pouco mais de 20% das pessoas falavam português. A maioria, formada por imigrantes, falava as muitas línguas de onde emigraram. Não houve uma efetiva política pública de aprendizagem do português. Hoje, passeando pelo centro da cidade, entre os muitos africanos, chineses e pessoas de outras nacionalidades, vivencio uma realidade parecida. Talvez se tenha tornado um traço de nossa cultura: deixamos o português solto. Temos dificuldades com as regras.
Apesar disso, a língua portuguesa está na escola. A sua introdução no currículo escolar deu-se de modo tardio em relação a outros componentes curriculares como as matemáticas ou as ciências. Afinal, para que ensinar algo que a pessoa já chega à escola sabendo? Essa pergunta foi respondida com a gramática. Encheu-se o currículo escolar com aulas de gramática do que se considera o "bom português". O resultado não produziu os efeitos pretendidos, pelo menos no Brasil. Apesar dos esforços, há ainda muito descaso com a nossa língua materna e o ensino, por vezes, excessivo de regras não produziu falantes mais eficientes de português.
O português está na escola, sim, mas muitas vezes alienado da realidade do Brasil e do mundo. Mesmo a introdução de uma Base Nacional Comum Curricular (ou BNCC) na vida escolar brasileira não produziu ainda os resultados desejados. Os motivos são muitos: o contexto político em que foi elaborada, a distância entre a academia, que produziu o texto, e a realidade da prática de professores muitas vezes mal remunerados e tantas outras também mal formados, a dificuldade dos cursos de licenciatura de se orientarem pelo documento, vaidades humanas, interesses econômicos e o desconhecimento.
A BNCC defende a diversidade linguística do português como componente curricular e incentiva a formação de um leitor inter-semiótico, ou seja, que circula entre as diferentes e variadas linguagens. Esperava-se sobrepujar os estudos classificatórios de gramática. Na prática? Poucas mudanças. Tanto nos colégios públicos quanto nos privados, classificar gramaticalmente e transmitir as características das escolas literárias ainda alimenta o imaginário do cotidiano da sala de aula. Elabora-se uma maquiagem que não se revela eficiente. E a universidade, apesar de variados esforços, ainda distante da realidade, continua com uma formação de professores que, salvo exceções, oscila entre um idealismo romântico e a negação e até desconhecimento da realidade do futuro professor que o será em um cotidiano por vezes difícil e sufocante.
Mesmo quando a BNCC, como documento oficial do Estado brasileiro, afirma que as variedades do português devem ser estudadas em ambiente escolar, desconsidera ou minimiza a realidade internacional de nossa língua. Além disso, em um país em que o dinheiro historicamente mudou muitas vezes de mãos, a ascensão econômica e social revelou-se não significar uma mudança cultural e, muito menos, de preocupação com o registro linguístico. Há uma dificuldade da escola de ensinar o amor à língua portuguesa e ao seu conhecimento nas suas muitas manifestações.
Mas há alguns aspectos interessantes que alimentam a esperança. É quase um traço da cultura brasileira amar a poesia de Fernando Pessoa. Estudamos — ainda que mal — Literatura Portuguesa e um pouco daquela dos países africanos onde também se fala português. Nesse sentido, Portugal deixa muito mais a desejar em relação à nossa literatura. Há mesmo muitos apaixonados pela literatura portuguesa no Brasil. Somos muito criativos na inovação lexical e estamos sempre enriquecendo o dicionário do português com palavras novas. E, como brasileiros, nunca desistimos de nada… Continua, no entanto, claro, sendo necessário um esforço sério para que esta língua que nos permite dizer “eu amo você” receba os seus merecidos conhecimento e valorização.