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Afonso Borges assumiu a missão de espalhar o gosto pela leitura no Brasil
Para o escritor, os festivais literários não devem ser apenas um espaço para a venda de livros, mas, também, um ambiente de convívio entre população e autores para atrair mais leitores.
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Para o mineiro Afonso Borges, 62 anos, organizar uma feira literária não é só criar uma vitrine para escritores venderem suas obras. O objetivo do criador de festivais de literatura em Araxá, Paracatu, Itabira e Petrópolis é envolver a comunidade, fazer com que as pessoas se sintam representadas nos livros que leem e, assim, desenvolvam o hábito da leitura.
Jornalista, escritor e produtor cultural, Borges também tem como meta dar voz a autores negros brasileiros. Criador do programa Sempre um Papo, atualmente no SESC de São Paulo, ele acredita que a literatura brasileira está vivendo uma transformação, com o surgimento de novos escritores que têm a mesma cor de pele da maioria da população brasileira, vivenciando muitas das experiências que essa maioria tem que enfrentar.
Borges esteve em Lisboa para lançar seu livro Tardes Brancas, uma coletânea de contos que inclui também cinco poesias. Até nisso ele enfrentou uma ideia feita, a de que prosa e poesia não se misturam. Veja os principais trechos da entrevista ao PÚBLICO Brasil.
Como surgiu a ideia do projeto Sempre um Papo?
Comecei lançando livros de escritores em Belo Horizonte, promovendo debates e palestras. Com o tempo, o projeto cresceu e foi levado para São Paulo, onde estou há 21 anos, fazendo o Sempre um Papo no Sesc. A partir daí, surgiram outros eventos literários, como a Fliparacatu, a Fliaraxá e a Flitabira, que já está nos quarto ano.
Qual o impacto desses festivais na literatura brasileira?
O mais interessante é ver o quanto esses eventos conectam grandes nomes da literatura com o público. A literatura brasileira está passando por uma transformação, com a nova geração de escritores negros, como Itamar Vieira Júnior e Jefferson Tenório. Eles estão contando a história do Brasil sob uma nova perspectiva, a do oprimido, do escravizado. Isso está mudando a forma como o país se vê.
Como se deu a conexão com grandes escritores?
Muitos deles são praticamente parte da família para mim. Pessoas como Fernando Morais, Zuenir Ventura e Ricardo Kotscho são amigos de longa data, e essa proximidade é o que faz esses eventos serem tão especiais. Eles não apenas lançam seus livros, mas também compartilham suas histórias e experiências com o público de forma genuína.
Ao assistir os vídeos do Festival Literário Internacional de Paracatu, é possível ver a diversidade de pessoas. O que você acha disso?
Creio que isso acontece porque o festival não se limita a ser apenas um evento de palco com grandes nomes. Quando aprovamos um projeto pela Lei Rouanet para fazer um festival, a primeira coisa que penso é em como envolver a comunidade local, não apenas com palestras e debates, mas com atividades que mobilizem do ponto de vista educacional, artístico e social. Em Paracatu, no ano passado, fizemos uma exposição do "Portinari Negro", com quadros de Portinari e uma palestra do filho dele, João Cândido. Neste ano, trabalhamos diretamente com a comunidade negra, selecionando 25 professoras negras da cidade, contando suas histórias, fotografando-as e exibindo essas imagens em grandes estruturas na praça da igreja da Matriz.
Esse tipo de ação realmente mexe com a comunidade?
Totalmente. E isso é só uma parte. Criamos também um prêmio de redação focado nas vidas dessas professoras negras. Os alunos, desde os mais jovens até os de 18 anos, tiveram que conhecer essas histórias e criar fanfics baseadas nelas. Foi emocionante, especialmente para as professoras e para a comunidade negra. Paracatu é uma cidade com 78% de população negra, então, foi uma experiência muito forte. Imagine uma menina de 9 anos, de uma escola rural, ganhando R$ 1 mil (166 euros) por um texto que escreveu. Para essa criança e a família dela, isso é uma revolução e, na escola, ela se torna um exemplo de autoestima e sucesso.
E isso tudo acaba gerando um impacto muito maior do que só o evento em si...
Com certeza. No ano passado, por exemplo, três jovens de Paracatu escreveram e lançaram livros após o festival. Esse tipo de coisa coloca Paracatu no mapa.
Você diria que é um festival antirracista e democrático?
Sim. Todos os nossos festivais são. São eventos que buscam promover a diversidade, a educação e a cultura de forma inclusiva. A ideia é sempre impactar todas as idades e camadas sociais. O festival tem gerado tanto engajamento, que as pessoas até pedem mais. Para 2024, já temos programação para o ano todo em Paracatu, com autores convidados mensalmente para participar de eventos na cidade, patrocinados pela Lei Rouanet (com benefícios fiscais).
E tem alguma outra cidade, além de Paracatu, onde tem feito esse trabalho de levar autores e desenvolver a interação com a comunidade?
Já fiz em muitas cidades brasileiras, mas essa ideia de fazer algo contínuo, uma vez por mês, é mais recente. Araxá foi um dos primeiros lugares, onde trabalhei por muitos anos com o Fliaraxá, mas parei recentemente. Em São Paulo, já estou há 21 anos fazendo o Sempre um Papo, principalmente no Sesc, com quem temos uma parceria forte. No passado, também fizemos em Curitiba e em várias cidades do interior do Paraná, por alguns anos. Mas a maioria desses projetos está sempre ligada à Lei Rouanet. Ou seja, se houver uma cidade, uma empresa ou um prefeito interessado em promover eventos literários, a gente monta o projeto e leva os escritores.
As abordagens nos festivais são mais amplas? Não são apenas debates e palestras?
Não são só reuniões de autores. Em todos os festivais, eu sempre trabalho para envolver a comunidade de uma forma mais profunda. A gente sempre procura trazer atividades que vão além da literatura, oficinas com artistas locais, músicos da cidade tocando, exposições e muito mais. O conceito é trazer todas as artes em volta do livro, criando um festival verdadeiramente inclusivo e abrangente. E não para por aí. Todos os nossos debates e eventos são transmitidos ao vivo, disponíveis no YouTube já na segunda-feira após o festival. Isso garante que o conteúdo seja acessível e continue impactando, mesmo após o evento terminar.
Como você gerencia a infraestrutura, já que algumas cidades menores têm limitações em termos de hospedagem e alimentação?
Em Paracatu, por exemplo, eu tive que improvisar. Os restaurantes locais cobravam valores altos, então aluguei um espaço vazio e trouxe uma equipe de Itabira que cuida da alimentação em nossos eventos. Criamos um ambiente maravilhoso onde, à noite, os autores se juntavam para tocar música, conversar e trocar experiências. É essa leveza e interação que torna o festival tão especial.
Além de Paracatu, Araxá e Itabira, você mencionou Petrópolis. É uma nova cidade para o festival?
Sim, ano que vem será o segundo ano do festival em Petrópolis. Acredito que vai se tornar um dos eventos literários mais importantes do Brasil. O festival acontece no Palácio de Cristal, e lá eu transformo o local em uma livraria, o que cria uma atmosfera única. Estamos sempre tentando inovar e tornar cada edição especial, com o mesmo modelo de debates, oficinas e apresentações culturais.
Pretende expandir para mais cidades?
A ideia é sempre fazer mais, mas sou realista. Organizar um festival desse porte tem um custo elevado, em torno de R$ 2 milhões a R$ 2,5 milhões (330 mil a 415 mil euros). E o único jeito de viabilizar isso é com apoio da Lei Rouanet e patrocínios de empresas. Se houver interesse de outras cidades, a gente expande, mas é preciso o envolvimento local. A prefeitura sozinha não consegue bancar, então, é fundamental ter empresas que abracem a ideia.
Sente que esses festivais têm o poder de reunir pessoas e histórias de um jeito que outros eventos culturais talvez não consigam?
Acho que sim. A literatura, em especial, tem essa capacidade de provocar reflexões, de mexer com a nossa percepção de mundo e de nos fazer conectar com o outro. Quando você lê uma história ou participa de um debate literário, é quase como se estivesse vivendo uma experiência com o autor, com os personagens. E os festivais ampliam isso, porque não só ouvimos as histórias, mas também as discutimos, as questionamos.
Isso tudo deve exigir uma organização enorme. Como consegue coordenar tantos eventos ao mesmo tempo?
É complicado, mas tenho uma equipe muito dedicada. Como disse antes, o segredo é a equipe. Eles são muito bons, e isso me dá a tranquilidade de estar presente nos eventos, de fazer as entrevistas, de cuidar dos livros e ainda ter tempo para viajar, como para Lisboa.
Com toda essa agenda cheia, ainda consegue tirar tempo para conhecer lugares novos?
Sim, de vez em quando. A mente precisa de um respiro, de novas paisagens para se inspirar. Acho que esses momentos fora da rotina, visitando outros países, me ajudam a manter o equilíbrio, a recarregar as energias.
Acha que viajar influencia na sua escrita?
Viajar é uma das maiores fontes de inspiração. Cada lugar tem suas próprias histórias, suas peculiaridades. E, para quem escreve, isso é um prato cheio. A Capadócia, por exemplo, foi um dos lugares que mais me marcou e inspirou alguns dos contos do meu novo livro.
Você lançou no Brasil e em Portugal o livro Tardes Brancas. Esse foi seu primeiro livro?
De contos, sim. Mas tenho oito livros de poemas e um livro infantil. O de contos foi uma verdadeira lapidação. Originalmente, eram escritos para jornal e, depois, eu os trabalhei em contos. Todos esses contos são reais. São histórias de quando eu era jovem e ia buscar pedras preciosas com meu pai no interior do norte de Minas — meu pai mexia com pedras preciosas —, histórias vividas na Turquia, quando visitei a Capadócia, histórias com escritores, como Oswaldo França, Murilo Rubião, Bartolomeu Campos Queiroz e tantos outros, mas todas elas com uma velocidade muito grande. Faço frases muito curtas e com muita ação no texto. E inventei uma outra forma de contar a história, em que, na maioria desses contos, o primeiro parágrafo conta uma história, o segundo parágrafo conta outra, e eles se juntam no final. Tem harmonia no conjunto, mas é outra história.
E por que o nome Tardes Brancas?
É um dos poemas. Tardes Brancas vem de um sonho que a Márcia Tiburi me contou, em que estava no quarto dela e apareceu uma pessoa. Eu estava em Paris na época e visitei o cemitério Père-Lachaise. Era uma tarde branca, era uma tarde nublada. Paris tem dias brancos, nublados, frios. Tardes Brancas é o nome de um conto.
E os poemas, como surgiram?
Escrevo poesia a vida inteira. Mas foi engraçado, porque uma editora me pediu para fazer uma antologia de 40 anos de poemas, já que eu escrevo desde os 15. Aí, eu pensei: Beleza, vamos fazer um livrão! Quando fui rever meus poemas, me perguntei: Como escrevi isso?. De 500 poemas, sobraram cinco. Destruí todos os outros. E fiquei relutante, porque não existia livro de contos e poemas juntos.