Um urso a coçar-se, um elefante a caminhar: câmaras revelam biodiversidade no Camboja

Projecto usou mais de uma centena de armadilhas fotográficas durante meses para analisar a biodiversidade nas montanhas de Cardamomo, no Camboja. Resultado mostra um “refúgio vital”, diz ministro.

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Um elefante-asiático fotografado por uma armadilha fotográfica na floresta das montanhas de Cardamomo, no Camboja Conservation International
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Um urso-malaio atravessa a correr o plano da câmara, pára junto de uma árvore, coloca-se de pé sobre as patas traseiras, estica-se e usa o tronco da árvore para coçar o seu dorso e cabeça. Depois, senta-se durante poucos segundos e volta a correr selva abaixo, até a câmara o perder de vista entre as árvores. Este é um dos milhares de pequenos vídeos captados entre Fevereiro e Dezembro de 2023 na Paisagem das Montanhas de Cardamomo Central (PMCC), um refúgio da biodiversidade que fica perto da região costeira do Camboja, no Sudeste Asiático. A colecção de imagens permitiu identificar 108 espécies de animais, 23 deles em risco de extinção, e mostrar a importância daquela região protegida enquanto reduto da biodiversidade.

O trabalho “mostra o papel vital daquela paisagem na preservação de habitats com um alto valor de conservação, essencial para a sustentação de numerosas espécies ameaçadas”, lê-se no sumário do Relatório da Monitorização de Espécies para o Projecto Redd+ da Paisagem das Montanhas de Cardamomo Central. O Redd+ (Reduzir Emissões da Desflorestação e da Degradação Florestal em Países em Desenvolvimento) é um projecto-quadro nascido do Acordo de Paris para proteger as florestas, ecossistemas importantes enquanto sumidouros do dióxido de carbono, o mais importante dos gases com efeito de estufa que estão na origem das alterações climáticas.

No caso da PMCC, que agora foi alvo de estudo com um sistema de captura de imagens através de armadilhas fotográficas, está em causa um bioma com 4013 quilómetros quadrados (um pouco maior do que o distrito de Coimbra), a grande maioria dele intacto, que, por sua vez, pertence ao Parque Nacional de Kravanh Phnom, com 9261 quilómetros quadrados. Ao todo, existem ali 622 espécies de vertebrados (357 aves, 107 mamíferos, 51 répteis, 37 anfíbios e 70 aves). Embora a câmara tenha apenas captado imagens com uma parcela daquelas espécies (65 aves, 38 mamíferos e cinco répteis), o registo é muito importante, defendem os peritos.

“O estudo estabelece uma linha de base crítica para futuras monitorizações das populações da vida selvagem, e também destaca as necessidades de conservação críticas da região”, adianta Sony Oum, director de campo da organização Conservation International Camboja, citado num comunicado da Conservation International (CI).

Gato dourado asiático © Conservation International

Além desta organização, a monitorização daquele bioma resultou de uma colaboração que envolveu o Governo do Camboja, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento, o Legacy Landscapes Fund , uma organização não-lucrativa sediada em Frankfurt, na Alemanha, a empresa norte-americana Procter & Gamble, que vende produtos de higiene pessoal, e as comunidades locais e indígenas da região.

“Estou sempre entusiasmado quando observo aqueles animais e trabalhar com a equipa [da CI] na salvaguarda deles é uma grande iniciativa”, disse, por sua vez, Samphotn Chem, um membro da comunidade local tatai, que participou neste projecto. “Espero que os meus filhos e a próxima geração possam ainda vê-los da mesma forma que os vi”, acrescentou, citado no mesmo comunicado.

Quotidiano colorido

Além do urso-malaio (Helarctos malayanus), que é uma espécie vulnerável à extinção, as câmaras apanharam imagens de mamíferos como o elefante-asiático (Elephas maximus), em perigo de extinção de acordo com a classificação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês), o urso-negro (Ursus thibetanus), vulnerável à extinção, o leopardo-nebuloso (Neofelis nebulosa), vulnerável à extinção, o gato-marmoreado (Pardofelis marmorata), o gato-bravo-dourado-asiático (Catopuma temminckii) e o cão-selvagem-asiático (Cuon alpinus), que também está em risco de extinção e é um “dos últimos predadores que ainda existem no Camboja”, segundo o comunicado.

Mas também há filmagens do javali (Sus scrofa), de uma espécie de muntíaco (Muntiacus vaginalis), que é um tipo de veado, do pangolim-malaio (Manis javanica), que está criticamente em risco de extinção, do porco-espinho-malaio (Hystrix brachyura), de um gibão-cristado (Hylobates pileatos), em perigo de extinção, entre muitas outras espécies.

O projecto pôs 147 armadilhas fotográficas no terreno em arranjos de dez, organizadas em quadrículas de dois por dois quilómetros. O movimento dos animais perto das armadilhas accionava o registo das câmaras. Ao todo, foram obtidos 55.000 vídeos e 22.200 captações de imagem.

Vários vídeos documentam apenas os animais a atravessarem o plano, mas por vezes observam-se pormenores que dão mais cor ao quotidiano daquela floresta húmida, como um elefante que derruba uma árvore, um pangolim-malaio que leva uma cria na cauda, a dinâmica de uma matilha de cães-selvagens-asiáticos e um urso-malaio que resolve cheirar uma das armadilhas fotográficas. Nos vídeos obtidos à noite há sempre uma forte presença sonora feita pelos insectos e outros animais que povoam a floresta, mas que não se vêem.

“O resultado da sondagem reafirma que as florestas do Camboja não são apenas paisagem, mas um refúgio vital para as espécies diversas do nosso planeta”, constata, por sua vez, Sophalleth Eang, ministro do Ambiente do Camboja. O bioma é reconhecido como uma das 200 biorregiões mais importantes do planeta.

Urso-sol © Conservation International

Apesar de ser protegido, o PMCC ainda é ameaçado pela expansão da agricultura, a actividade madeireira e as armadilhas de caça furtiva. A pequena frequência de vídeos com elementos da população de elefante-asiático é um efeito provável da caça furtiva que esta espécie sofreu no passado, avança o relatório. Mas, pelo contrário, o grande número de vídeos com a presença de animais como o javali e o muntíaco, duas presas favoritas de muitos predadores, é um bom augúrio para a recuperação de espécies predadoras como o cão-selvagem-asiático e para a reintrodução do tigre naquelas montanhas, um projecto que se encontra em curso.